Daniel Giotti de Paula*
“Muitos brasileiros estão felizes, muitos brasileiros não estão felizes. Mas assim funcionam as eleições. Essa e a natureza da democracia. Ela é dura”.
Esse não foi o discurso proferido por nenhum dos candidatos, após a decisão da eleição para a Presidente da República no domingo último. Foi Obama quem o proferiu com Trump já eleito. Substituí americanos por brasileiros, obviamente, mas creio que Obama dissesse o mesmo aos brasileiros.
Fui correr, enquanto o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) começava a apurar os votos. Não aguentava ficar em casa esperando o resultado que, do ponto de vista eleitoral, já era previsto.
Estava aflito, admito. Uma aflição sobre os dias, meses e anos vindouros. Pensava em Mário Covas, Franco Montoro, Itamar Franco, Darcy Ribeiro, Victor Nunes Leal, Adaucto Lúcio Cardoso e tantos democratas que sempre admirei.
A praça onde corria e as ruas próximas estavam quase desertas. Algo diverso ao que sucedeu depois, quando se tomaram as cidades Brasil afora. A democracia pulsa com a ocupação de espaços públicos, seja por quem vence, seja por quem perde os pleitos eleitorais.
Em poucas horas, já estava definida a vitória de Jair Bolsonaro. Seu discurso da vitória, tendo perto de si um livro de Winston Churchill, teria sido simbólico de como a democracia realmente é o único dos regimes possíveis. Ele cedeu, como não cedera muitas vezes durante sua carreira política. A ficha caiu. Percebeu ele que não é mais um parlamentar representante de uma minoria, mas o Presidente de toda uma nação?
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Esquerda e direita, progressistas e conservadores, Norte e Sul, todos precisam entender isso: a democracia é um valor em si. Por essa razão, o discurso de Haddad, não cumprimentando o adversário pela vitória, saiu do figurino que se espera de um democrata. Bola que ia para fora, mas que teve seu trajeto alterado pela saudação que fez ao Presidente eleito, em sua conta oficial no twitter, no dia seguinte ao resultado.
Mas se Bolsonaro parece ter diminuído seu discurso particularista e sectário, temos, infelizmente um Presidente, cujas propostas de governo não sabemos bem. Não participou de nenhum dos debates do segundo turno. Não teve a oportunidade de negociar apoio com outros candidatos durante o segundo turno.
Independentemente de sua impossibilidade física, foram-lhe ofertadas oportunidades para debater, telepresencialmente, das quais se esquivou. Isso é ruim, prática não inventada por ele, mas por Fernando Henrique Cardoso em 1998, e Lula em 2006.
Além de se escolher a melhor proposta, abre-se a possibilidade de cada um melhorar seu projeto de governo, corrigindo erros apontados pelos adversários ou incorporando as boas propostas daqueles contra quem concorre.
A política, para Carl Schmitt, seria uma questão de amigo e inimigo. Escreveu para uma Alemanha dividida, mas teria escrito da mesma forma para o mundo e para o Brasil de hoje. A filosofia política atual, porém, nos ensina que podemos ser melhores que isso. Quem pensa diferente não pode ser meu inimigo.
A ruptura que temos, após dezesseis anos de um grupo e de uma base social no poder, não pode implicar quebra da democracia. Ao revés, precisa-se respeitar a opinião alheia, não importando se anteriormente foi diferente. Mais democracia ainda é a chave para uma sociedade heterogênea.
Para isso, é necessário se entender o que constitui o núcleo essencial da democracia, aquilo sobre o qual não podemos transigir, daquilo que está no espaço da conformação política do projeto vencedor.
Unir o Brasil, de fato, passa por isso. Podem-se repensar políticas públicas, mas autonomia da vontade e condições mínimas de igualdade formal e material são conquistas civilizatórias, sem dizer o óbvio que é o respeitar as regras democráticas de acesso e manutenção no poder.
Além disso, a neutralidade estatal sobre as escolhas políticas, pois o Presidente representa todos os brasileiros e todas as brasileiras, é uma conquista da qual não podemos nos arredar um centímetro sequer.
É hora de reafirmar um Estado laico, como prega a Constituição da República, permitindo convivência pacífica entre todas as crenças e aqueles que não creem, e a reafirmação da liberdade de expressão, cláusula pétrea que oxigena a democracia, bem é valor dos mais caros e que permite a alternância do poder.
Passa também por pensar nas gerações futuras, equilibrando despesas atuais com receitas futuras esperadas. Matemática difícil, ônus de quem é gestor.
Democracias podem morrer à direita ou à esquerda, como bem expressam Steven Levitzky e Daniel Ziblatt. Alteração da composição de Cortes de Justiça, com aposentadorias compulsórias e aumento de vagas nos tribunais, e perseguição aos adversários, na lógica amigo-inimigo, usando critérios específicos e novos para punir criminal, cível e administrativamente os “inimigos”, foram usadas pelo governo de Chávez, autoproclamado representante de um movimento de esquerda, e por Andrzej Duda, chefe de Estado polonês e representante da extrema-direta europeia.
Mais democracia faz bem à economia, às mentes e aos corações. A hegemonia do poder e de ideias gera náusea.
Assim, “o ponto é que todos sigamos em frente, com a presunção de boa-fé de nosso povo, porque essa presunção de boa-fé, é essencial para uma democracia vibrante funcionar”. De novo, Obama. Será que todos passaremos a acreditar nessa presunção e a tomaremos como prática cotidiana de hoje em diante?
*Doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento, Procurador da Fazenda Nacional, Professor de Direito Financeiro e Tributário.
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