O golpe de 1964 completa 60 anos neste domingo (31). Ainda que o Estado brasileiro hoje assuma oficialmente que pessoas foram mortas ou estão desaparecidas por causa da ditadura militar, 364 continuam como desaparecidos políticos, sem que os familiares ou o governo saibam seu paradeiro ou o de seus corpos. O Brasil também não avançou em determinar o número de camponeses e indígenas vítimas.
O trabalho de identificação dessas pessoas e a busca pela localização dos corpos é atribuição da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). O colegiado foi desativado no fim do governo de Jair Bolsonaro (PL). O presidente Lula (PT) prometeu retomar os trabalhos da comissão durante a campanha eleitoral de 2022, mas não cumpriu a palavra até agora, um ano e três meses depois de assumir a Presidência.
A CEMDP foi criada a partir de uma lei de 1995 (Lei nº 9.140). O Ministério dos Direitos Humanos, comandado por Silvio Almeida, é o responsável pelo colegiado. Procurado pelo Congresso em Foco, o ministério não se manifestou sobre a demora para a retomada da comissão. Esta matéria será atualizada caso a pasta se manifeste.
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O presidente Lula, por sua vez, já disse que não quer ficar “remoendo” o golpe de 1964. Segundo o chefe do Executivo disse em entrevista ao jornalista Kennedy Alencar no fim de fevereiro, ele está “mais preocupado com o golpe de 8 de janeiro de 2023 do que com 64”.
O peso da memória
Especialistas ouvidos pelo Congresso em Foco criticam a fala de Lula. Para eles, se o governo brasileiro não está disposto a preservar a memória e deixar claro o que foi feito pela ditadura militar contra a população, o que está em risco não é o passado, mas o futuro.
“A ideia muito vaga de que é preciso abandonar, passar uma borracha no passado, é como se a memória não importasse para um projeto de futuro”, disse Piero Leirner, antropólogo da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) especialista em temas relacionados aos militares.
PublicidadePara ele, a atitude do governo Lula se dá por um “acordo com as Forças Armadas” no contexto de uma extrema-direita fortalecida e uma esquerda fragilizada. “Toda a relação do Lula com as Forças Armadas é constituída por um movimento de pressão que joga ele mais à direita. Isso é consequência de ele ser refém de uma situação em que o Bolsonaro ainda tem muita força política”, diz o antropólogo.
Para Diva Santana, ex-integrante da Comissão de Mortos e Desaparecidos e familiar de desaparecidos políticos, a demora do governo em retomar os trabalhos da comissão é uma ação antidemocrática.
“O presidente foi muito infeliz em fazer essa colocação. Todos nós temos história, ele conta sempre a história da vida dele. Todos temos passado. Mas não estamos falando do passado, mas sim do futuro. É preciso analisar os erros e acertos para construir o futuro”, disse Santana. A ex-integrante da CEMDP afirma que há ossadas recuperadas pela comissão que ainda não foram identificadas. Ela diz que a memória e a verdade do que aconteceu e de quem são essas pessoas é um trabalho que precisa ser feito pela comissão, um órgão oficial por lei.
Para Leirner é necessário que ações para “reequacionar o papel dos militares no Brasil” para que as Forças Armadas não se sintam à vontade para participar do jogo político. A fala de Lula no sentido de ter foco no 8 de janeiro e não no golpe de 1964 não faz sentido para o pesquisador.
“O esforço que Lula está fazendo é para dizer que o 8 de janeiro foi diferente do 64. Por quê? Porque o 64 foi institucionalizado e o 8 de janeiro, não. Nesse sentido ele está limpando a barra dos militares”, analisa Leirner. Para ele, não há ganho democrático na ação do presidente, que só mantém os militares confortáveis em interferir no debate político brasileiro.
Rafael Schincariol, representante do Instituto Vladimir Herzog, diz que, ainda que o presidente Lula queira fazer acenos para as Forças Armadas, é importante que o governo mantenha as políticas públicas e ações de memória, verdade e justiça relacionadas à ditadura militar. Nesse sentido, o instituto defende uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para deixar claro que as Forças Armadas não são um Poder moderador, já que nem mesmo chegam a ser um dos Poderes da República. Estão submetidas ao Poder Executivo, representado pelo presidente, e à Constituição.
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou o julgamento de uma ação sobre o tema na sexta-feira (29) em plenário virtual. O voto do relator, ministro Luiz Fux, foi no sentido de que não existe Poder moderador.
Ainda de acordo com Rafael Schincariol, o Instituto Vladimir Herzog espera que o presidente Lula cumpra a lei e retome as ações para memória, verdade, justiça e reparação do que foi feito na ditadura militar. “A nossa preocupação maior é que o governo mantenha as políticas públicas. Porque o contrário é muito ruim, como um governo que mantém os gestos simbólicos, mas deixa de lado as políticas públicas”, disse Schincariol. “A gente tinha uma expectativa de que com o 8 de Janeiro esse governo pudesse entender que um dos elementos que fez chegar ao 8 de Janeiro é que não estamos trabalhando como deveríamos a reparação do que aconteceu na ditadura militar”.
A Comissão de Mortes e Desaparecidos, para Santana, é a única forma oficial atualmente para se buscar por justiça, memória, verdade, reparação e democracia. A ex-integrante do colegiado lembra que ainda há centenas de desaparecidos, além dos prováveis milhares de indígenas e camponeses que também foram vítimas.
Santana defende que os familiares, como ela, e o país têm o direito de saber o que aconteceu, quem está morto e quem foram os responsáveis. Diva Santana é irmã da desaparecida política irmã Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada do desaparecido político Vandick Reidner Coqueiro.
“Os pais já se foram quase todos. Meus pais se foram sem saber o que foi feito da filha deles. O presidente acha isso justo?”, disse a ex-integrante da comissão.
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