Se num primeiro mandato Donald Trump agiu como um populista, tipo bastante conhecido na América Latina, no segundo, a escolha de seus secretários indicam claramente o caminho para uma democracia oligárquica, regime em que eleições e participação popular coexistem com o domínio político e econômico de uma elite restrita, que controla os principais recursos e decisões políticas.
Se num primeiro mandato Trump tentou indicar secretários mais próximos ao establishment esperado por Washington, no segundo, o critério de escolha é somente um: lealdade. Trump fez campanha antissistema, criticando as instituições burocráticas americanas, e muitos eleitores votaram em Trump por conta desta retórica.
O segundo governo dele testará todos os limites das instituições norte-americana e do Estado Democrático de direito. Resistirão? Para aprofundar esta análise entrevisto Luciana Bauer, Doutoranda pela Delaware Law School, juíza federal por mais de 20 anos, professora de direitos humanos, direito intergeracional e direito climático e fundadora da Jusclima, coletivo climático, que no início do ano que vem lançará o livro Democracia indiferente.
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Dra. Luciana, quais suas expectativas com relação a este segundo mandato de Trump, considerando o que tivemos no primeiro?
No primeiro mandato dele tivemos uma grande sorte, no azar, que foi a pandemia. Trump entrou como um outsider e não conseguiu implementar tudo o que queria. Agora, num segundo mandato, Trump vem fortemente representando uma parte de uma elite que o financia e tem ideias retrógradas. Além disso, vem implementar o projeto 2025, apanhado de propostas de políticas da direita mais extremista elaborado pela Heritage Foundation, e que possui uma agenda de desmobilização total da democracia, começando pelo desmanche de toda a estrutura das Instituições democráticas americanas.
Como dizia o historiador Jhon Lukacs: cada vez mais que os Estados Unidos se afastam da tradição da primeira Constituição Americana, idealizada pelos Founding fathers (pais fundadores) mais ela se afunda, mais se degenera. A Constituição americana foi idealizada com alguns parâmetros, historicamente impossível compreendê-la sem lembrar que os USA receberam os Pilgrims, fugitivos religiosos, que vieram para a América, em busca de direitos e liberdades individuais que não eram respeitados pela coroa Inglesa. Alguns destes valores e ideias são expressos no preâmbulo da constituição americana com palavras muito singelas, mas muito profundas, como: o povo, a segurança própria da nação e a liberdade. Um prólogo muito significativo e é que está se desmanchando hoje.
Posteriormente, com Abraham Lincoln esta constituição é revista nos seus limites. A grande pergunta de Lincoln é: uma constituição redigida por homens todos brancos, ricos e escravocratas é legal? O dilema se dá no contexto da Guerra de Secessão Americana. Lincoln se questiona se pode ir contra outros Estados federados e a escravidão, com isto faz uma revisão da ideia inicial de liberdades individuais que os Founding fathers colocaram na Constituição original. A democracia Americana se constitui assim, em torno da ideia de defesa da liberdade fortíssima, fundamental para os Pilgrims que migraram para a América no Mayflower.
O Projeto 2025 do Trump é um projeto de desmanche total da ideia Constitucional original americana. Vemos a força do poder do Capitalismo de vigilância, do capitalismo de atenção, do capitalismo dos algoritmos. Quem ascende ao pode com Trump, não é somente Trump ou o partido republicano, são as grandes big techs. A democracia tem dois pontos nevrálgicos. Primeiro, a indiferença com que as pessoas têm com a democracia que fazem com que as pessoas votem em partidos golpistas, como Bolsonaro ou Trump. E Trump foi ratificado novamente. No Brasil ainda não, mas se mantivermos a temperatura das eleições municipais deste ano, é o que irá acontecer. Em segundo, é o grande ataque das big techs às liberdades, pois o algoritmo tira totalmente a concepção do John Rawls sobre o consenso inerente ao fazer política, ou a razão pública do Habermas; sobre a possibilidade de um diálogo político saudável para chegarmos a consensos a partir de opiniões políticas aparentemente irreconciliáveis.
O que seria um diálogo político saudável? Diálogos dentro dos sindicatos, não temos mais sindicatos. Diálogos na grande mídia de jornais sérios, que estão sendo sistematicamente atacados por estes algoritmos, ou o diálogo nas universidades.
Realmente o diálogo político não está saudável hoje…
Sim, no conceito de política de Estado do Habermas você vê que não temos mais o diálogo político autêntico. Os algoritmos captam os interesses das pessoas e vendem estes interesses. A mineração de dados é o grande esteio do capital, por isto falamos em capitalismo de vigilância, ele vive desta mineração de dados. E esta mineração de dados está indo para um novo patamar que não é só minerar, mas fazer o algoritmo de persuasão. Algo que já existe a 20, ou 30 anos, mas hoje posso fazer um candidato no molde do que a insatisfação das pessoas quer.
Gostaria de perguntar suas perspectivas com Trump com relação ao meio ambiente, já que você é fundadora de um coletivo climático, O Jusclima.
Vou começar pontuando a diferença entre EUA e Brasil no quesito defesa do meio ambiente. A constituição Americana foi revolucionária 240 anos atrás, hoje ela é uma Constituição obtusa na medida em que se fechou em si mesma e tem pouquíssimas emendas. Não tem direitos sociais ou difusos. Neste sentido nossa Constituição brasileira de 1988 atribui direitos difusos, ao meio ambiente saudável etc. que o Supremo interpreta que são direitos climáticos através da pauta verde e principalmente da DPF 760. No Brasil, temos o Ministério Público, as associações, agentes públicos que defendem estes direitos. Nos Estados Unidos não, é um sistema não facilitado de litigância que você precisa do “standing”, doutrina que remonta aos tempos romanos há mais de 2.000 anos atrás e que consiste em demonstrar o dano.
Esta defasagem da Constituição mostra uma certa degeneração da democracia americana. O Professor Lukacs aponta que os Estados Unidos, sem atualizações constitucionais, se tornaram um Estado tecnocrático e burocrático onde as demandas populares não afloram mais. Esta é uma pauta muito forte do Senador democrata Bernie Sanders, um apelo muito forte, principalmente dos mais jovens, por uma mudança, um apelo para que os Estados Unidos tenham uma Constituição mais moderna, principalmente no direito à saúde, à licença maternidade, direitos básicos em democracias mais modernas pelo mundo. Este Estados tecnocrático e burocrático é uma grande degeneração da promessa da Constituição americana lá de trás e ele culminou com Trump. As elites trouxeram Trump até nós com um grande impulso dos algoritmos.
Retomando um pouco o governo Trump no primeiro mandato com relação ao meio ambiente. Trump retirou os Estados Unidos do Acordo de Paris, e se retirou de duas COPs que aconteceram durante seu primeiro mandato antes das discussões sobre meio ambiente acontecerem, que é uma forma de negar completamente a pauta ambiental. A política negacionista climática no primeiro governo Trump foi barrada pela absoluta ignorância em saber-se lidar com a administração pública e uma longa curva de aprendizado. Você teme que num segundo governo Trump, que já tem um conhecimento adquirido e um indicado para presidir o EPA (Agência de Proteção Ambiental dos EUA), Lee Zeldin, mas que ainda precisa ser escrutinado e referendado pelo Senado, mas é um cenário “doce” para o ex-Presidente eleito, já que conseguiu maioria no Senado e na Câmara.
O EPA, como órgão federal, perdeu grande relevância já no ano passado, com o entendimento da Suprema Corte de maioria mais conservadora, de que as funções de regulamentação e fiscalização ambiental ficariam a cargo dos Estados, e não mais com o órgão independente. Assim, mesmo que Trump indique um negacionista, o EPA já é um órgão esvaziado pelo novo julgamento.
Nos USA, os Estados têm uma grande autonomia. Alguns deles tem o direito a justiça climática garantida em suas leis Estaduais como Havaí, Califórnia, Massachusetts e outros. O que falta na Constituição federal, alguns Estados garantem. Ao mesmo tempo em que estes Estados estarão mais “protegidos”, outros, mais alinhados politicamente ao negacionismo Trumpista tendem a piorar suas legislações ambientais… como você percebe esta dinâmica? Talvez o modelo Norte-Americano de descentralização e grande poder legislativo nos Estados será um grande instrumento de resistência contra Trump. Fosse como no Federalismo Brasileiro, seria impossível.
No Havaí houve um caso interessante conhecido como “Navahine vs Departamento de Transportes do Estado Havaí”, são jovens que pleitearam o fim do transporte público do Estado feito a partir de carbono, o processo foi aceito e o próprio Governador do Havaí concordou. Foi uma sentença climática maravilhosa. Acho que será assim com Trump, uma coisa esquizofrênica, a Flórida retirando tudo que tem a ver com clima de sua Constituição e o Havaí coloca.
Minha visão é de que “contra a realidade, não há narrativa”. A autoridade climática mundial já mostrou o dado, o ano de 2024 já foi 1,5C mais quente que a era pré-industrial, o Acordo de Paris já se esvaziou, já que seu objetivo principal era evitar o aumento de temperatura global de 1,5C que aconteceu muito rápido. O Presidente da ONU Guterres falou: “a terra está ardendo, os mares estão ardendo”. A realidade é que teremos desastres em massa, as populações mais afetadas vão começar a se deslocar em massa. A expectativa é de que o México e o Texas se tornarão rapidamente inabitáveis. Será um pandemônio, um grande desastre. Como um Estado não tão democrático vai gerenciar uma realidade destas? A realidade vai se impor. A realidade já está se impondo, nestes dois últimos furacões que aconteceram na Flórida as pessoas se perguntavam: será que eu devo reconstruir minha casa para ela ser destruída novamente?
Minha tese é de que haverá uma convulsão social causada pela crise climática tão forte que ela vai reconduzir a democracia, pois somente a linguagem democrática é capaz de compor um desafio civilizacional tão grande.
O estilo de liderança de Trump e dos Republicanas MAGA não dão muito espaço para o dissenso mesmo dentro do Partido Republicano. É um estilo de liderança autoritária e autocrática que prega “ou você está comigo 100% ou está fora”. Trump e seus seguidores republicanos não têm nenhuma restrição em perseguir outros republicanos conservadores tradicionais como Liz Cheney, por exemplo.
O partido republicano de Lincoln acabou, dando lugar ao político outsider, autoritário e populista que é Trump. Não existe mais diálogos, possibilidades de acordos ou fazer político no partido republicano. John Rawls coloca “nem sempre a razão pública é possível; ela não é mais possível quando estamos em uma ruptura total da democracia”. Podemos estar neste nível, de ruptura total da democracia.
No livro “O crepúsculo da democracia”, Anne Applebaum, para você quebrar a democracia você precisa de um partido único. O Lênin teve a grande criação do partido único, sem questionamentos. O Trump está em busca desta mesma estratégia, um partido único. Todos em busca das mesmas benesses.
Sim, um partido que todo mundo reza a mesma cartilha. E é também algo como uma oligarquia. Eu acho que os Estados Unidos estão migração para uma democracia de características oligárquicas. A forma como ele está compondo seus Secretários de Estado me diz muito sobre isto. Com Musk, por exemplo, são interesses particulares de um grupo específico de pessoas.
Bem quando a Europa e o Brasil estão discutindo regulamentação de algoritmos, os USA não o fazem, pois os donos dos algoritmos acendem ao poder. Quem ascende ao poder com Trump, não é Trump ou o partido republicano, são as grandes big techs.
Quem você acha que pode fazer resistência a Trump? Do que está por vir. Além dos Estados não governados por Republicanos, claro. A sociedade civil organizada, as ONGs? Ou uma perspectiva mais litigiosa com organizações como a ACLU, ou, neste cenário de Trump com maioria no Congresso e Senado, será um desastre mesmo?
Bem, sempre temos que procurar a sorte no azar. Como ele levou ganhou em tudo, acredito que ele vai implementar tudo que quer e rápido e a resistência será mais forte. Não sei de onde virá esta resistência, mas eu acredito muito que estes valores da primeira Constituição estão introjetados de alguma forma nas Instituições e na cabeça das pessoas, que ainda existe um pouco de racionalidade, que não caíram na armadilha da desinformação em massa. Acho que esta racionalidade dos grandes valores americanos de liberdade pode se concretizar e pode ser o ressurgimento de uma nova Constituição.
Mas como ter uma nova Constituição se os eleitores são manipulados para votar em pessoas contra seus próprios interesses e valores? Então voltamos para brutalidade da economia digital que os franceses chamam de a nova barbárie. Todo o povo, toda a classe média americana está votando contra seus próprios interesses. Bem, a inflação não vai cair, o superendividamento americano em dólar vai ser colocado em cheque pelos BRICS. Em algum momento, mesmo com todo este conteúdo manipulado as pessoas vão se revoltar. Talvez a revolta venha dos próprios deputados republicanos que votaram pelo Impeachment do Trump, quem sabe. Quando a vitória é muito grande a derrota pode também ser muito grande.
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