Allan Titonelli Nunes e Daniel Giotti de Paula *
Byung Chul-Han chama de regime de informação a atual “forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos”. Isso é facilmente perceptível, assim como o avanço da digitalização sobre o mundo da vida, que causa uma espécie de “embriaguez de comunicação e informação”. Forças destrutivas afetam os âmbitos políticos, que podem levar a fraturas e disrupções massivas no processo democrático, a ponto de o filósofo sul-coreano sugerir que a democracia se degenera em infocracia, pois:
“A democracia está em perigo onde quer que cidadãos interajam com robôs de opinião, se deixando manipular por eles, onde quer que operadores, cuja procedência e motivos são completamente ocultos, interfiram e se intrometam nos debates públicos. Na campanha eleitoral como guerra de informação, não são os melhores argumentos que prevalecem, mas algoritmos independentes. Nessa infocracia, nessa guerra de informação, não há lugar para o discurso”.
O assunto merece análise jurídica, pois, se as constituições modernas tratam de democracia, sua degeneração é algo a ser combatido institucionalmente.
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A infocracia é uma degeneração contemporânea, mas não se pode esquecer que ausência de serviços públicos implica promessas não cumpridas da modernidade, o que também configura uma democracia degenerada.
Isso porque a cidadania se consagra pelo exercício de seus direitos, entre eles o de voto é o mais elementar, pois os direitos foram conquistados pela participação política ativa do cidadão.
PublicidadeInfelizmente, o descolamento dos interesses dos cidadãos e das classes políticas aqui no Brasil tem se intensificado e pode ser aferido pelas últimas pesquisas de avaliação do grau de confiabilidade das instituições, em que os partidos políticos e o Congresso Nacional estão nas duas últimas colocações.
Isso traz riscos, pois gera descrença nas instituições, e a participação cívica ativa garante e fomenta a democracia, nessa relação imbricada entre ela e a cidadania.
Inevitável concluir que é preciso mudar as práticas políticas. Em última análise, poderíamos dizer, que nossa democracia estaria enfrentando uma crise de representatividade e legitimidade.
O fenômeno, porém, é mundial. Francisco Bosco aponta que as populações têm precificado o déficit de democracia, de modo que “entre 1979 e 2014, a média de comparecimento nas eleições que decidiam os representantes do povo no Parlamento europeu caiu vinte pontos, numa baixa recorde de 43%. Em muitos países, apenas uma em cada três pessoas se dispunham a votar. Nos Estados Unidos, até meados dos anos 1960, 70% dos americanos confiavam no seu governo ‘na maior parte do tempo’ ou ‘quase sempre’. Mas por volta da reeleição de Obama, em 2012, esses números despencaram para apenas 22%”.
A necessidade de interação e congruência de interesses entre os cidadãos e a classe política exige acesso à informação, transparência e publicidade, princípios fundamentais para a prestação de contas à sociedade, consistindo em deveres da administração para com o cidadão. Yang e Maxwell abordam sobre a importância do compartilhamento de informação, fazendo referências sobre sua contribuição para a democracia.
Portanto, a tecnologia pode permitir maior interação e comunicação entre os cidadãos e os poderes públicos, de modo que existe uma digitalização que fomenta a democracia, ao invés de levar a que se degenere em infocracia.
Assim, para haver equilíbrio entre o poder da sociedade e o poder do Estado, é preciso que coexista “uma sociedade que tem voz e está vigilante e disposta a se envolver em política e contestar o poder.
Se por um lado se sabe que o regime de dominação da digitalização massiva do mundo da vida pode enfraquecer a democracia, pode-se pensar também a tecnologia como aliada governamental para atender aos reclamos da sociedade, para então servir ao propósito da sociedade civil de conter o poder estatal.
Por exemplo, Barcelona é uma cidade exemplo de integração da tecnologia com um ambiente mais democrático, tendo sido escolhida em 2014 como a Capital Europeia da Inovação.
A cidade digital estratégica (CDE) objetiva melhorar o serviço público disponibilizada ao cidadão, promovendo sua participação, focando em conectividade, disponibilidade de informações, tecnologia, monitoramento e infraestrutura, para alcançar os resultados almejados.
Considerando a revolução na informação provocada pela internet não se pode conceber um governo como democrático se este deixa de cumprir com seus deveres básicos, enfim não há democracia sem informação, alerta esse já feito, muito antes do surgimento da internet, por Albert Einstein “Tecnologia é o que permite a comunicação, e comunicação é fundamental para a democracia”.
Filosoficamente, a transparência, no sentido de que seja imperativo atualmente tudo estar disponível na condição de informação, leva ao paradoxo de que livres são os dados, não as pessoas, aprisionadas nas informações, além do que “a própria transparência nunca é transparente”, pois quem estabelece os algoritmos e quem faz a mineração de dados pode controlar a sociedade.
Entretanto, do ponto de vista institucional, a transparência ajuda a sociedade.
Vale destacar, nesse sentido, alguns aplicativos colaborativos de destaque, os quais se pudessem utilizar de dados abertos dos governos do Brasil em determinadas áreas poderiam evoluir ainda mais. O Primeiro exemplo é o Waze, aplicativo colaborativo de trânsito, que hoje funciona melhor que as agências oficiais destinadas a fazer esse papel, tanto é assim que alguns veículos de comunicação fizeram parcerias com o aplicativo para divulgação de informações sobre o trânsito.
Um outro aplicativo colaborativo de sucesso é o Onde tem Tiro, que se integrasse aos sistemas de segurança pública poderia ser ainda mais eficiente na sua missão de divulgação.
Nesse sentido específico, um Estado transparente fornece liberdades civis e direitos fundamentais indistintamente, devendo ele se valer da tecnologia para fomentar o exercício pleno da cidadania, promovendo essa como fundamento da democracia, uma promessa ainda não totalmente concretizada.
O Brasil tem avançado nesse caminho, tanto assim que alcançou a segunda colocação em ranking de maturidade digital do World Bank, mas ainda há muito o que ser feito.
Inclusive, dada a relevância da temática, o governo da Alemanha tem participado e promovido eventos que tem como escopo a democracia digital, havendo diversos projetos com a Fundação Getúlio Vargas, entre eles o Workshop internacional de digitalização e democracia, palestra proferida pela Ministra das Relações Exteriores da Alemanha sobre Democracia e Digitalização: Desafios da Era Digital e o Projeto sobre democracia digital.
E uma nova etapa dessas discussões foi debatida em outubro deste ano, em um Curso Internacional na Alemanha sobre “Digitalização e Democracia – um Diálogo Brasil-Europa”. Naquela oportunidade, o professor João Carlos Souto, palestrando sobre “Big Data, eleição de Donald Trump (2016) e mecanismos de defesa da democracia – Brasil e EUA, destacou que “a história recente demonstra que eleições democráticas e esfera pública digital no Brasil passaram por ações do STF.”
Da mesma forma, a Escola Superior da Advocacia-Geral da União e o Banco do Brasil promoverão um grande seminário tendo como temática Direito e Tecnologia, que será híbrido e ocorrerá nos dias 21 e 22 de novembro, no Centro Cultural do Banco do Brasil de Brasília, onde os temas aqui enfrentados serão debatidos. Observa-se, assim, a relevância de se construir caminhos democráticos em um Mundo cada vez mais integrado digitalmente.
* Allan Titonelli Nunes é procurador da Fazenda Nacional e desembargador eleitoral substituto do TRE-RJ, mestre em Administração Pública pela FGV, especialista em Direito Tributário, ex-Presidente do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).
Daniel Giotti de Paula é doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, procurador da Fazenda Nacional e professor de Direito Financeiro e Tributário.
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