Por Cristina Saraiva e Hedda Smedheim Bjerklund, especial para o Congresso em Foco*
A democracia brasileira, historicamente, sempre conviveu com problemas graves de sub representação de alguns grupos, e alguns temas, por muito tempo, ficaram fora dos temas centrais de discussão .
Ainda que ao longo do tempo, e muito gradualmente, alguns novos e importantes temas venham entrando em nossa pauta parlamentar e alguns grupos outrora marginalizados, venham se consolidando como força expressiva em nosso Parlamento, ainda estamos muito longe de uma representatividade minimamente satisfatória.
Isso torna-se ainda mais claro -e grave – quando falamos de causas como a questão ambiental e quando pensamos em nossos grupos indígenas . Hoje apenas a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) se apresenta como representante desses grupos.
Nesse contexto, torna-se no mínimo interessante – e por que não dizer, instigante- trazer a experiência do Parlamento Sami.
Os Samis (pejorativamente chamados de Lapões, termo atualmente abolido em toda Noruega) são um grupo étnico nativo da região da Escandinávia.
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Com diferentes grupos linguísticos, há muitos séculos ocupam regiões setentrionais da Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia e contam hoje em dia, com cerca de 70.000 pessoas – quase a metade delas no norte da Noruega. Ainda não há estudos definitivos mas alguns indícios demonstram que teriam convivido em relativa harmonia com os Vikings, não sendo possível precisar qual povo ocupou a terra incialmente.
Considerados grupos indígenas, os Samis na realidade compartilham de muitas características dos nossos indígenas.
Inicialmente nômades, viviam da pesca, caça, coleta , e eram tradicionais criadores de renas – delas tiravam alimento, roupas, sapatos, utensílios domésticos. Viviam em tendas e se locomoviam em seus trenós puxados pelas renas.
Como se pode imaginar, por muito tempo os Sami foram perseguidos e discriminados. Vítimas de racismo e extrema violência cultural até meados do século passado, tiveram seus idiomas e manifestações culturais proibidas e foram obrigados a assimilar, pela força, a cultura norueguesa, integrando- se à sociedade dominante.
Após muito tempo de luta, os Samis foram aos poucos conquistando seus espaços e garantindo direitos. Hoje é um povo relativamente protegido pelo governo norueguês. Têm suas próprias escolas onde aprendem seu idioma, sua cultura, seu artesanato . Além dos vários representantes desse grupo étnico integrados à sociedade norueguesa, muitos vivem atualmente em cidades setentrionais, de maioria Sami. Ainda que tenham em suas cidades moradias fixas, ainda viajam muito e passam tempos fora de suas cidades, recriando um pouco da vida nômade de outrora. O idioma Sami, de origem fino-úgricas (grupo linguístico ao qual pertencem ainda o finlandês e o húngaro) é hoje, considerado, ao lado do norueguês, idioma nacional da Noruega.
De todas as conquistas Sami na luta por seus direitos, a mais emblemática talvez tenha sido, em 1989, a criação do Parlamento Sami
O Parlamento Sami, criado em 1989, é financiado pelo Estado Norueguês, e é a instância máxima de representação do grupo étnico. Conta com 39 membros eleitos democraticamente em 7 circunscrições eleitorais, , a cada 4 anos. Estão aptos a votar e serem votados todos aqueles que se declaram como parte da etnia e se registrem em um conselho eleitoral municipal. Convém ainda lembrar que há Parlamentos Sami também na Suécia, Finlândia e Rússia
O Parlamento Sami é responsável por definir as políticas voltadas para a comunidade Sami, e tem inclusive direito jurisdicional sobre a região da Finnmark ( região norte da Noruega historicamente ocupada, de forma majoritária, pelo povo Sami). Nessa região, todas as decisões – inclusive relativas à posse/ propriedade de terras, são decididas por um órgão formado por três representantes do Parlamento Sami e três representantes do Condado de Finnmark ( normalmente também composto por Samis).
Em caso de empate em uma resolução , a decisão fica por conta de um comitê formado por um integrante do Parlamento Sami, um integrante do condado de Finnmark e uma pessoa apontada pelo rei da Noruega. Não se tem notícia que esse comitê já tenha sido acionado em algum momento, mas seja como for, é uma demonstração contundente de que o governo norueguês não tem nenhuma ingerência sobre a área.
As eleições se dão em base proporcional, de acordo com o número de eleitores cadastrados em cada uma das 7 circunscrições. Os eleitos formam então a Assembleia , que se reúne 4 vezes ao ano para deliberações. São responsáveis ela elaboração de toda a política pública que diz respeito ao grupo Sami. Caracteriza-se como um corpo político independente, que interage como ator fundamental tanto junto ao próprio parlamento Norueguês quanto a demais instância políticas internacionais consolidadas.
Além das Assembleias trimestrais, há ainda um Conselho Executivo, formado por 5 membros, sendo um deles o Presidente da Assembleia – eleito entre os pares.
É esse Conselho o responsável pela elaboração e execução das políticas que dizem respeito ao povo Sami. Funciona como uma espécie de “gabinete”- inicia os debates e implementa decisões enquanto tiver a confiança da Assembleia.
Quanto aos demais parlamentares, fazem parte de comitês que organizam as Assembleias Plenárias , recebendo e debatendo as diretrizes propostas pelo trabalho do Conselho, e preparando-as para as discussões plenárias.
A estrutura política adotada pelo Parlamento Sami, pode, com certeza, ser alvo de críticas e constante aperfeiçoamento. Entretanto, é inegável perceber que a simples existência desse Parlamento, inclusive com poderes jurisdicionais sobre a região que abriga a maior parte dessa etnia, é um passo adiante na luta pelos direitos dos povos indígenas, e convém ser melhor estudado e conhecido por nós, que estamos ainda muito longe de equacionar de forma satisfatória a presença indígena em nossas instâncias de poder.
* Cristina Saraiva é ativista ambiental, compositora e historiadora, fundadora do GAP Pró- Música. Hedda Smedheim Bjerklund é mestranda de filosofia na Universidade Ártica da Noruega, em Tromsø. Sua tese analisa mudanças climáticas e comunidades indígenas.
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