Como sempre, o futuro depende do legado recebido e das decisões tomadas no dia a dia. E, cada vez mais rapidamente, as condições de vida dos nossos filhos e netos dependem e diferem daquelas de seus pais e avós. Cientes que estamos ou deveríamos estar, desde que Aristóteles assim advertiu, que a desigualdade traz instabilidade, qual futuro escolheremos para nossos descendentes?
O século XVI foi muito diferente do anterior, em razão da grande “novidade” de então: a descoberta de um novo continente com recursos abundantes para, afastada a população local, suprir a carente Eurásia. África e Oceania mal se sabia existirem. Os séculos seguintes também foram muito diferentes dos anteriores com a Reforma do Cristianismo, as revoluções norte-americana e francesa, o tsunami Napoleão e a restauração, as revoluções europeias de meados do século XIX, a intensa e crescente queima de resíduos fósseis para usar a energia neles contida, o automóvel transformando o território, duas guerras mundiais, as bombas nucleares e a explosão demográfica e de consumo. O século 21 já é e será, ainda mais, completamente diferente dos anteriores, pelos antecedentes e pelas suas próprias “novidades”.
Entre estas, a constatação de que, se continuarmos na mesma trilha – mais e mais produtos cada vez menos duráveis, mais e mais poluição e lixo, miséria persistente (70% da população de animais humanos vive com menos de US$ 10,00/dia!), menos e menos recursos naturais (hídricos, atmosféricos, marítimos e de solos), degradação ambiental e humana –, o resultado será mais guerras, mais genocídios, mais poluição, mais miséria e fome e, por fim, uns matando os outros até que todos morram. Será um privilégio desejável ser o último a sucumbir?
Alterar a rota é necessário, essencial, urgente e possível, ainda que muito difícil!
Neste quadro, acaba de acontecer mais uma reunião do Brics, grupo que pretende, ou pretendia, ajudar a promover mudanças na ordem global. A fala do chefe chinês em tal encontro é de enorme relevância, tendo em vista, inclusive, os quarenta ou mais séculos de história que informam as políticas daquele país.
Antes de reproduzir tal fala, vale registrar que executivos chineses com frequência mencionam episódios da história do seu país, ocorridos há trezentos, quinhentos ou mais anos, como exemplos dos quais aprender lições. Outro ponto a destacar é que, para muitos, toda e qualquer mensagem vinda da China é suspeita, assim como, para muitos outros, todas as originadas dos EUA. É claro que muitas são, sim, enganosas e interesseiras, mas nem todas. O radicalismo da visão simplista – “tudo que vem de lá é ruim”! – decorre de preconceito e impede analisar com a profundidade devida muitas dessas mensagens.
Com a ressalva adicional das dificuldades de tradução entre idiomas tão díspares, disse Xi Jinping na reunião dos Brics, segundo a agência estatal chinesa de notícias: “a crise da Ucrânia voltou a soar o alarme para a humanidade. Países acabarão em dificuldades se depositarem fé cega na expansão de alianças militares e na busca de sua própria segurança às custas dos outros.”
Há que refletir sobre essas palavras, nesse século em que se tornou claro que a melhoria da qualidade de vida dos povos exige ações globais, e que iniciativas nacionais, embora necessárias, por si só não mais são suficientes. Algo semelhante ao que ocorreu nos séculos XVIII e XIX, quando unidades territoriais menores perderam força e, juntando-se, tornaram-se países.
Há que refletir sobre a ideia de que “países acabarão em dificuldades se depositarem fé cega na expansão de alianças militares e na busca de sua própria segurança às custas dos outros”.
O presente século, por ser tão diferente dos anteriores, exige novas soluções. Devemos buscar segurança em conjunto com os outros, não às custas da segurança deles. Há que minimizar o risco de agravamento da dupla degradação, a humana e a ambiental, e o ressurgente perigo de extermínio por bombas nucleares. Minimizar ambos é, sim, o único caminho que nos possibilita um futuro auspicioso.
O alerta da China soa como “faça o que digo, não faça o que faço”, pois a imensa expansão da sua capacidade militar – mas não alianças militares! – nas últimas décadas não parece lhe dar credibilidade. No entanto, há muita verdade na firmação, que é uma evidente referência à expansão da Otan nas últimas três décadas!
A Organização do Tratado do Atlântico Norte, como se sabe, nasceu como uma aliança militar para enfrentar o expansionismo da União Soviética. Logo, quando esta acabou, a Otan também deveria ter sido dissolvida, mas o lobby do complexo industrial-militar-consumista não permitiu que tal ocorresse. Pelo contrário, a Otan se expandiu, apesar das incontáveis tentativas de todos os líderes russos, desde Gorbatchov, em aproximar a Rússia da Europa, na busca de um caminho comum cooperativo. Mesmo Putin tentou tal caminho até que, sentindo-se encurralado, como todo animal – como somos todos nós! –, atacou! Todas aquelas tentativas de aproximação foram recusadas pelos EUA pois, sem inimigo, como continuar a gastar em armas de guerra? (Os episódios que ilustram tais iniciativas e recusas estão relatados e documentados no excelente livro de Richard Sakwa, Borderline Ukraine: Crisis in the Borderlands.)
Também o discurso que busca justificar o enfrentamento entre o “Ocidente livre” e os países “autocráticos” deve ser questionado. Afinal, a autocracia da “inimiga” Rússia pouco difere da autocracia de “aliados” como a Arábia Saudita e outros! Também é semelhante a influência que exercem sobre as políticas governamentais, lá, os chamados “oligarcas”, e cá, os ditos “bilionários” ou “investidores”, sendo questionável existir diferença entre uns e outros.
Nesse quadro, surgem “análises” as mais variadas defendendo que o “Ocidente” deve ampliar seus gastos com armas. O influente jornal inglês The Telegraph publicou, no último dia 23, artigo intitulado “A Inglaterra deve estar preparada para ir à guerra contra a Rússia”. Um think tank também inglês, chamado Royal United Services Institute, fundado em 1831, recém divulgou documento defendendo a ampliação dos gastos militares do Reino Unido e do “Ocidente”, cuja capacidade logística estaria enfraquecida.
Irônica e tragicamente, diz esse instituto que sua missão é “informar, influenciar e promover o debate público para ajudar a construir um mundo mais seguro e mais estável”. Com tanta miséria, tanta degradação humana e ambiental, desviar recursos da solução dessas degradações para aplicá-los em favor do complexo industrial-militar-consumista seria “construir um mudo mais seguro e estável”?
Em seguida, foi a vez do CEO dos EUA chamar o CEO da Rússia de “criminoso de guerra”. Ainda que este possa ser assim adjetivado, o seu maior rival chamá-lo desta forma certamente não contribui em nada para qualquer perspectiva de paz! Há ainda muitos outros “analistas”, com ou sem aspas, a defender a ampliação dos gastos militares. Isso, quando todos sabem que os arsenais já disponíveis são suficientes para matar uma, duas, três ou mais vezes toda a população humana!
O valor anual desses gastos ultrapassou US$ 2 trilhões em 2021, dinheiro mais que suficiente para promover a transição energética, acabar com a fome e a miséria, dar educação e saúde de qualidade a todos no planeta e reverter a dupla degradação, ambiental e humana. Enfim, para construir um mundo mais seguro e estável. Há alguma dúvida sobre qual o melhor caminho?
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