Sylvio Costa
De Austin, Texas
Um encontro que reúne dezenas de milhares de profissionais ligados à tecnologia deveria mostrar como a nossa vida mudou para melhor nas últimas décadas, concorda? Como as facilidades criadas a partir da popularização da internet e de tantas outras ferramentas tecnológicas aprimoraram as maneiras pelas quais nos comunicamos, nos deslocamos de um lugar para outro, nos divertimos e redefinimos os rumos do planeta.
No gigantesco festival de inovação South by South West (SXSW), realizado entre os últimos dias 8 e 17 na cidade texana de Austin, EUA, os principais palestrantes – os chamados keynote speakers – defenderam, em sua esmagadora maioria, ideia totalmente oposta. “Toda tecnologia é droga. E, se internet é droga, o que estamos experimentando é uma bad trip”, resumiu o filósofo, escritor, professor e documentarista norte-americano Douglas Rushkoff, usando uma expressão que designa mais os efeitos desagradáveis causados pelo uso de drogas do que “viagem ruim”, no sentido literal.
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Boa parte desse incômodo com o saldo frustrante deixado pela revolução digital tem a ver com o poder titânico alcançado pelas grandes empresas de tecnologia. Ao mesmo tempo em que se apossaram do nosso tempo, dos nossos dados pessoais e da nossa atenção, involuntariamente ou não, elas contribuíram para a ascensão ao poder de patifes travestidos de políticos nos dias ímpares e de heróis antissistema nos dias pares. Plataformas como Facebook, Instagram e WhatsApp se tornaram territórios livres para a propagação de mentiras, numa escala jamais vista na história da humanidade.
Pano rápido. Algumas dezenas de pessoas se juntaram durante o SXSW para, numa bem-humorada passeata, proclamar: “Hey, ho, Zuckerberg has got to go”. Ou seja, para elas, o bilionário acionista controlador das três maiores mídias sociais do mundo, acima citadas, simplesmente “tem que ir embora”. Veja o vídeo:
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Zuckerberg cede a vez a Bezos
Justiça seja feita, contrariamente ao que ocorreu no ano anterior, Zuckerberg não foi o vilão-mor do #SXSW19. Esse posto foi transferido, com todas as honras e pompas, para Mr. Jeff Bezos. Sim, ele mesmo. O dono da Amazon, da maior fortuna individual do mundo e de negócios que… puxemos a lista… incluem grandes redes de varejo de alimentação, venda de calçados, empresas de saúde, de eletroeletrônicos, de serviços de vídeos, de produção de filmes, de sites de cupom, de robótica, de transações financeiras, de exploração espacial, de fabricação de tecidos e de roupas e, a cereja do bolo, o jornal The Washington Post.
O grande barato é que a mensagem final do evento foi positiva. Há chance de mudar. Resgatar o sonho original da world wide web, de integrar as pessoas para o bem, foi algo ressaltado por inúmeros palestrantes. Muitos defenderam maior e melhor regulação, de modo a proteger nossa privacidade e restringir as possibilidades de fraudar eleições por meio da disseminação de falsas informações. Outros acreditam que a saída é a tomada de consciência da parte dos nerds que ficaram bilionários com a internet e que agora precisam investir parte de sua grana em ações destinadas a consertar os estragos feitos ao longo do caminho. Há ainda quem acredite na tecnologia como antídoto contra os males causados pela disrupção tecnológica. Todos ressaltaram que qualquer transformação só virá se nós, os bilhões de terráqueos conectados pela internet, nos mobilizarmos para enfrentar corajosamente os problemas que ela traz.
Dada a dimensão colossal do SXSW, quem participa do festival acompanha apenas uma pequena fração das zilhões de palestras, debates, apresentações, demonstrações de produtos, experiências sensoriais, exibições de filmes, mentorias, competições (de startups e de cosplay), instalações, mostras de arte e premiações (para as áreas de games e de inovação tecnológica) realizadas. Durante dez dias, superei meus limites físicos para assistir, ouvir e sentir o máximo possível. Mas, obviamente, não vi tudo. Escolher o que destacar aqui exigiu depois um lento e exaustivo processo de filtragem, que, lamento informar, não fui capaz ainda concluir. Por isso, destaco algumas coisas nesta fornada, e prometo outra mais pra frente, na medida em que minha tarefa principal – acompanhar os (des)caminhos do Congresso Nacional e da política nestes tempos esquisitões – permitir. Minha seleção é produto de reflexões, mas também de sensações & sentimentos, de visões do futuro e do passado, de noites indormidas, do impacto causado na alma pelos sons de um evento que tem fortíssimo componente musical, das dicas preciosas de Felipe Aguiar e dos acordes, imagens e dos goles de cerveja sorvidos com avidez naquele quadrado circunscrito entre, de um lado, a Cesar Chavez e a 10th Street e, do outro, a Congress Avenue e North Interstate Road. Serão, embora talvez o tamanho deste texto indique o contrário, breves registros para momentos que duraram uma eternidade.
Futuro, privacidade e comida, por Amy Webb
Vários palestrantes, muitos deles de renome internacional, discorreram sobre os três temas acima. Mas a futurista Amy Webb foi quem apresentou a versão mais bem amarrada, abrangente, didática e consistente da interseção desses e de vários outros assuntos vitais para o planeta nas próximas décadas. Não lhe faltam credenciais para isso. Fundadora do Future Today Institute (Instituto Futuro Hoje, em português) e professora de Previsão Estratégica da New York University, ela é consultora de governos, instituições militares e de diversas empresas inovadoras.
Também coordena o Tech Trends Report, relatório mundial sobre as principais tendências na área de tecnologia, cuja 12a edição ela resumiu no SXSW19. O documento retrata um mundo prisioneiro de nove grandes companhias de tecnologia: as norte-americanas Google, Microsoft, Amazon, Facebook, IBM e Apple, agrupadas nessa ordem para formar a sigla “G-MAFIA”; e as chinesas Baidu, Alibaba e Tencent (para Amy, BAT – isto é, morcego). As nine big techs, por sinal título de recente livro publicado por Webb, controlam globalmente um dos mais promissores negócios existentes, o da inteligência artificial. Já sabem muito sobre nós. Manipulam dados pessoais sem o nosso consentimento, conhecem nossos hábitos, preferências de consumo e de leitura. “A privacidade morreu”, sintetizou a pesquisadora. E se movimentam para dominar duas fronteiras até aqui razoavelmente livres do império das gigantes da tecnologia: nossas casas e nossos corpos.
Exagero? Sei não, hein. No primeiro caso, Amy Webb mostra como as big techs têm investido pesadamente no bilionário negócio das casas automatizadas, ou smart homes, em plena ascensão também no Brasil. Veja o caso da, sempre ela, Amazon. Produz diversos dispositivos domésticos controlados por voz – a novidade da vez é um forno de microondas. Associou-se com a maior construtora residencial dos Estados Unidos, a Lennar. Comprou, em 2017, a rede de supermercados Whole Foods (coincidentemente, criada e sediada em Austin) e está constituindo uma nova rede para venda de alimentos no varejo. Conectando todos esses dados, Amy Webb considera plausível que, em futuro próximo, a Amazon esteja produzindo e vendendo alimentos geneticamente modificados em escala local, arruinando agricultores tradicionais e o setor de transporte de cargas por caminhões. Qual agricultor ou caminhoneiro estaria hoje imaginando ter a Amazon como concorrente? Em última instância, prossegue ela, não é de se descartar um cenário em que os Estados Unidos se tornariam autossuficientes em alimentos, eliminando importações. “Veríamos aí a Amazon redesenhando o perfil diplomático do mundo”, acrescentou.
A recomendação dela: prestar atenção não só na sua área de atuação, mas em áreas adjacentes. “Não se trata apenas de definir como a sua empresa vai ser, ou como será a área em que ela está inserida, mas como o mundo vai funcionar”. Outra tendência, para a futurista, é a exploração econômica da gestão de bancos genéticos e da edição de DNA. Sintomaticamente, uma empresa presente no SXSW19 se oferecia para analisar de graça o DNA dos participantes. O objetivo, claro, era ficar com as informações genéticas dos solicitantes do serviço. Lembremos que a modificação genética de órgãos humanos já é realidade. Após citar o cientista chinês He Jionkui, que chocou a comunidade científica no final de 2018 ao anunciar que tinha alterado o DNA de duas gêmeas para torná-las mais resistentes ao HIV, ela questionou: “A quem pertence o nosso DNA? Qual a ética deve prevalecer na gestão de bancos genéticos e na edição de DNA? A quem pertence o nosso corpo? Essas perguntas são bem menos simples do que parecem”.
Caso o seu inglês permita, vale muito a pena assistir à palestra integral. Uma aula, inclusive para leigos em ciência e tecnologia, que vai bem além do resumo que tentei oferecer acima daquela que foi, a meu ver, a palestra mais importante do #SXSW19.
Greve contra ou acordo com as mídias sociais?
Quem defendeu a proposta de greve foi o idealizador e cofundador da Wikipedia, o filósofo Larry Sanger. Um ou dois dias em que ninguém postaria nem acessaria nada nas redes sociais. “A greve poderia ser massiva porque o desejo de descentralização das mídias sociais é imenso”, comentou. Contra o poder excessivo do Facebook, do Twitter, do YouTube e de outras redes, ele também defendeu a realização de uma convenção virtual, a ser definida e chancelada em escala global, celebrando a descentralização e os valores democráticos, de acordo com o espírito original da internet. Na opinião dele, só a mobilização dos cidadãos pode dar novos rumos ao cenário inóspito da web atual. “Regular é um desastre. Ter o governo envolvido de alguma forma nisso me deixa nervoso”, disse. Larry Sanger também sonha com a criação de redes sociais alternativas e com saídas tecnológicas que permitam preservar a privacidade e evitar a manipulação de informações via mídias sociais.
Larry Sanger foi uma palestra – de sala lotada! – só para sortudos, como eu, e praquelas pessoas que manjam tudo de tecnologia e fazem a gente se sentir a criatura mais ignorante do sistema solar só de ouvir o papo delas, sempre cheio de referências a coisas que naquele instante ouvimos pela primeira vez. De certa forma, porém, ele ecoou preocupações expressas por um dos conferencistas mais festejados do evento, o músico, produtor, compositor e colecionador de Oscars T Bone Burnett. Ele foi aplaudido de pé no salão principal do SXSW, o famoso Ballroom D, ao rasgar o verbo contra os “plutocratas da internet”. “Estamos numa batalha. Numa batalha pela sobrevivência da nossa espécie”, disse, protestando contra a manipulação de dados para influenciar eleições. Para ele, “a internet fracassou”. A ideia de criar um sistema descentralizado e cooperativo deu origem a “uma máquina insidiosa de propaganda”. “Não vamos permitir que sejamos governados pela tirania de programas e de programadores”.
Música, música, música
Haveria muito mais a falar, mas preciso arrumar a mala de volta e você que me acompanhou até aqui talvez já não tenha tempo, ou paciência, para continuar comigo. Fora outros papos e experiências fundamentais (voltei, por exemplo, a ser criança me divertindo com um jogo de realidade virtual), impossível deixar de fazer referência às incontáveis atrações musicais colocadas à sua disposição, nos diferentes locais onde rola o SXSW — o que inclui ruas, bares e até uma igreja. Despeço-me com uma pequena amostra do talento de uma das fantásticas artistas que se apresentaram no evento neste ano, a estadounidense Amanda Palmer.
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