Por Rosana Tonetti
Especial para o Congresso em Foco
Temas tão complexos quanto polêmicos, inteligência artificial (IA) e Sistema Único de Saúde (SUS) se tornaram convergentes e alcançaram o centro do debate de um dos eventos que mais têm chamado a atenção no campo da inovação tecnológica: os hackatons, palavra originária da junção do inglês hack (no sentido de explorar de modo avançado as possibilidades da internet) e marathon (maratona).
Batizado de Health Al Bias Datathon, o hackaton realizado no último dia 18 de agosto na Emory University, em Atlanta (Geórgia), nos Estados Unidos, durou cerca de 36 horas e teve como foco a saúde pelo viés social. As discussões evidenciaram como algoritmos de IA enviesados podem reforçar preconceitos sociais, no mundo, quando o assunto é saúde.
Quem venceu a maratona foi uma equipe multidisciplinar, com oito integrantes, liderada pela cientista de dados brasileira Renata Prôa, 25 anos, cientista de dados do Hospital Albert Einstein. De acordo com Renata, as bases de dados disponíveis publicamente para o treinamento de algoritmos de IA são, em sua maioria, provenientes de países ricos e não refletem a realidade do povo brasileiro, formado por diferentes etnias.
Exemplo que reforça a tese é a predominância de conteúdos originários da Austrália na formação da base de dados de câncer de pele e de domínio público na internet. Eles são alicerçados na alta incidência da doença naquele país, uma vez que a maioria da população tem epiderme muito alva.
“Aplicar algoritmos treinados somente nessas imagens na população brasileira só aumenta as desigualdades e reforça preconceitos já existentes em nossa sociedade, uma vez que os algoritmos aprendem vendo exemplares”, explica Renata. Um algoritmo que aprendeu somente com imagens de pele branca, prossegue ela, não será bem-sucedido em peles escuras ou indígenas.
Além da Austrália, a China também contribui para nossas referências em termos de dados. “Boa parte das imagens de raio-x disponíveis publicamente para os desenvolvedores de inteligência artificial é chinesa e um algoritmo treinado exclusivamente para a população asiática provavelmente tende a funcionar melhor nesse grupo. Não podemos assumir que terá bons resultados na realidade brasileira”, afirma.
Renata destaca que um diagnóstico com base em informação equivocada pode induzir a tratamento impreciso: “Por isso, é fundamental trabalhar para concluir uma base nacional de imagens médicas para inteligência artificial junto ao Ministério da Saúde focada em nossa miscigenação”.
A alta representatividade nos conjuntos de imagens públicas de câncer de pele é apenas um exemplo que pode ser distorcido. Renata Prôa ressalta a importância de investir em estudos que levem em conta fatores essenciais para outras doenças, com aprofundamento em aspectos que vão além da etnia, tais como regionalização, sexo e idade, dentre outros.
Um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo, o SUS carece de recursos orçamentários para atender, de forma igualitária, todas as necessidades em um país de dimensão continental e de realidades tão distintas como o Brasil. Para Renata Prôa, porém, direcionada de forma correta, a IA vai ajudar na democratização do acesso ao SUS.
A tecnologia, diz ela, não substituirá o médico, mas pode contribuir para elevar a capacidade de atendimento do SUS. “Pode ajudar nos casos em que não há especialistas para atender a demanda, como em regiões mais remotas e nos casos de profissionais com treinamento menos especializado. Ela é muito útil na etapa de triagem, ajudando a eliminar casos mais óbvios e a evitar sobrecarga no sistema”, enfatiza. “A ideia é que a IA funcione como ferramenta de suporte para a decisão do médico”, completa.
O hakcaton de Atlanta foi o quarto do qual Renata participou neste ano. “Sem dúvida, foi a melhor experiência e a mais desafiadora da minha vida”, afirma. A jovem cientista reconhece que é preciso ter cuidado na utilização da inteligência artificial, mas não se deve evitá-la, em razão dos seus inegáveis benefícios.
Renata ingressou no Albert Einstein empenhada em estudar distonia, distúrbio neurológico dos movimentos caracterizado por contrações involuntárias dos músculos, principalmente a que afeta músicos profissionais deficientes auditivos. A ideia vem da forte ligação que ela sempre teve com a música. Além de tocar diferentes instrumentos musicais, a cientista já integrou a Academia da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Opesp) e a Escola Municipal de Música de São Paulo.
“Mas, assim que tive contato com a equipe do Proadi-SUS, me apaixonei de imediato. Decidi focar nisso e alterei meus planos”, conta. “Hoje, meu objetivo é levar todo o conhecimento adquirido para melhorar o sistema de saúde no Brasil e torná-lo mais abrangente e acessível”, acrescenta.
O Proadi-SUS foi criado em 2009 com o objetivo de dotar o SUS de projetos de capacitação em recursos humanos, pesquisa e avaliação, com ênfase na incorporação de tecnologias e na melhoria da gestão e de obtenção de assistência especializada. A iniciativa contempla parceria formada entre o Ministério da Saúde e seis hospitais de referência no Brasil: Oswaldo Cruz, Beneficência Portuguesa de São Paulo, Hospital do Coração, Sírio-Libanês e Albert Einstein, em São Paulo; e Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
Com o programa, esses hospitais, todos sem fins lucrativos, puderam destinar cerca de R$ 7,9 bilhões relativos à imunidade tributária em aproximadamente 750 projetos de cooperação técnica e operacional com o SUS.