Nesta série de artigos sobres as correntes ideológicas que inspiraram as grandes transformações históricas desde o século XVII, já visitamos cinco vertentes: conservadorismo, liberalismo, comunismo, social-democracia e fascismo. Hoje vamos explorar as linhas gerais de uma importante escola que embora nunca tenha sido hegemônica no poder, exerceu fundamental influência ideológica, teórica, política, moral no mundo contemporâneo, sobretudo no Ocidente e, particularmente, na Europa: o eurocomunismo.
Como já discutido aqui, a revolução industrial, o nascimento do capitalismo, a urbanização da sociedade e a democracia liberal produziram a mudança mais radical já ocorrida na história da civilização até então, deixando os vestígios do feudalismo e da monarquia absoluta para trás e impulsionando um inédito avanço das forças produtivas e no processo de inovação tecnológica. Mas as condições de trabalho e vida de amplas camadas da população submetidas à miséria e à exploração desencadearam o movimento sindical e socialista no século 19. Surge o pensamento de Marx e Engels que pretendia não só oferecer um amplo diagnóstico crítico sobre o funcionamento da sociedade capitalista, como erguer uma teoria econômica, política, moral, filosófica com vistas a orientar a luta dos trabalhadores rumo ao socialismo.
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Ao contrário do que imaginaram Marx e Engels, a revolução proletária não ocorreu nos países de industrialização avançada e capitalismo maduro, mas na Rússia, atrasada, rural e de capitalismo incipiente, através do “assalto ao poder” empreendido pelos bolcheviques, aproveitando as circunstâncias concretas da Primeira Grande Guerra e da revolta popular contra a fome e o autoritarismo czarista. Os comunistas chegaram ao poder pela primeira vez sob o lema “paz, pão e liberdade” e consolidaram a URSS. Do ponto de vista ideológico e teórico, Lenin assumiu o papel de sucessor de Marx – embora muitos analistas percebam evidentes tensões entre a formulação de um e de outro – e para o bem ou mal, o movimento comunista internacional passou a ser orientado pelo marxismo-leninismo.
Lenin morreu cedo e assumiu o poder uma das figuras mais controversas do mundo moderno: Josef Stalin. Muito distante de uma idílica e humanista construção social, a URSS passou a ser palco de uma grande tragédia, a tragédia stalinista. Coletivização forçada no campo com milhões de mortes; perseguição e assassinato de opositores entre lideranças sociais, comunistas divergentes, artistas, intelectuais; produção da farsa dos “Processos de Moscou”, que condenou à morte diversos e importantes membros do Comitê Central do PCUS; o assassinato de Trotsky, o maior e mais destacado oponente interno; a extinção de qualquer vestígio de democracia, com a supressão de toda e qualquer forma de liberdade, imperando um Estado totalitário e um ambiente de terror conduzido pelo partido único, suposta encarnação dos interesses operários e populares dentro da lógica da ditadura do proletariado para alcançar o comunismo. O papel da URSS, do Exército Vermelho e de Stalin na vitória sobre Hitler na Segunda Grande Guerra rendeu prestígio internacional ao ditador soviético, jogando uma cortina de fumaça sobre as atrocidades que aconteciam por trás da “cortina de ferro” e desencadeou a Guerra Fria, ambiente bipolar de confrontação entre os dois blocos liderados pelos EUA e pela URSS, que vai predominar até o final da década dos anos de 1980.
Durante todo esse período vários acontecimentos tiveram impacto sobre o movimento comunista internacional: o vazamento, em 1956, do relatório secreto de Nikita Kruschev, sucessor de Stalin após sua morte, denunciando as atrocidades da ditadura stalinista; a crise dos mísseis de Cuba, ponto extremo da Guerra Fria, em 1962; a invasão da Tchecoslováquia e a liquidação pelos soviéticos da Primavera de Praga, em 1968; a relação ambígua e complexa entre a União Soviética e a China, liderada por outro luminar do comunismo, Mao Tsé-tung; a Guerra do Vietnã, a ascensão de Gorbachev, com a Perestroika e a Glasnost; a queda do Muro de Berlim; a dissolução da URSS e o colapso do comunismo.
Ao longo de toda esta trajetória do movimento comunista internacional, liderado com mão de ferro pelos soviéticos de 1919 até sua dissolução, se desenvolveu paralelamente uma experiência original, diferenciada, heterodoxa e criativa a partir da evolução histórica do Partido Comunista Italiano, o PCI.
Como já vimos, o movimento socialista já havia se dividido no início do século 20 entre socialdemocratas – reformistas e comprometidos com a democracia – e comunistas – liderados por Lenin, Stalin e o PCUS. Mas na Itália se desenvolveu uma experiência diferenciado através do PCI, fundado em 1922, mesmo ano em que Mussolini chega ao poder. O eixo teórico e ideológico dos italianos, caminho tortuoso, repleto de contradições, se dá a partir da elaboração progressiva de seus líderes Antonio Gramsci, Palmiro Togliatti, Enrico Berlinguer e de um fértil conjunto de intelectuais, em busca do caminho italiano, e mais que isso, europeu, para o socialismo.
Gramsci certamente foi o mais importante teórico marxista após Lenin. Todo o seu pensamento tem que ser analisado com atenção redobrada já que sua morte foi precoce, em 1937, antes mesmo da Segunda Grande Guerra e da consolidação da tragédia stalinista, e a maior parte de sua obra foi produzida nas prisões fascistas e no hospital (Cartas e Cadernos do Cárcere). Gramsci foi fundador e secretário-geral do PCI, vindo do Partido Socialista, a que também pertenceu na juventude, Benito Mussolini.
Mas já em Gramsci estão presentes as sementes da via italiana para o socialismo e a valorização da democracia como valor universal e permanente. Suas ideias muitas vezes contraditava a visão soviética. Desenvolveu a ideia de hegemonia cultural em busca de liderança na sociedade através de uma “guerra de posições” em todos os campos da vida social, desencadeando o que chamou de “revolução passiva”, ou seja, um processo contínuo pelo qual um grupo social chega ao poder sem romper o tecido social, mas sim adaptando-se a ele e modificando-o gradualmente, em contraposição a alternativa ao “assalto ao poder” dos bolcheviques. Neste processo teriam papel ativo os “intelectuais orgânicos”, agentes de educação e transformação social ligados ao partido. Distinguiu os conceitos de sociedade civil e sociedade política. Defendeu, como Togliatti, a Frente Única contra o Fascismo, antes dos soviéticos se renderem às evidências.
Criticava o determinismo economicista do marxismo-leninismo e atribuía grande valor à chamada superestrutura (ideias, cultura, instituições, religião, política), não como mero reflexo do modo de produção e do estágio de desenvolvimento das forças produtivas, mas como possuidora de uma dinâmica complexa e de autonomia relativa. O partido deveria enraizar-se na sociedade a partir de um núcleo dirigente que produzisse a coesão de ideias e ações, de um núcleo médio disciplinado como elemento de ligação a motivar o universo difuso dos “homens comuns”. A sua independência em relação aos soviéticos se materializou em gestos como a carta de 1926, quando já era o dirigente maior do PCI, endereçada aos líderes da Internacional Comunista, criticando a oposição de esquerda à Stalin na URSS, mas opinando pela não expulsão de Trotsky e Zinoviev do movimento. Certamente, se estivesse vivo, ficaria escandalizado e indignado com as condições trágicas que cercaram a morte dos dois líderes.
Togliatti é herdeiro das sementes lançadas por Gramsci. Também foi fundador e secretário geral do PCI até a década de 1960. Tinha rara habilidade política e vivenciou um mar de contradições provocadas pela complexa realidade, ziguezagueando entre as condições concretas da Itália e as diretrizes da Internacional Comunista, da qual era alto dirigente. Foi um dos grandes líderes da luta antifascista e um dos protagonistas, na Itália, da construção da democracia e do próprio sentido inconcluso de Estado e Nação em seu país, no pós-guerra. Defendeu a valorização da democracia, uma política ampla de alianças e o diálogo com as demais forças políticas.
Enrico Berlinguer, secretário geral do PCI a partir de 1972, foi quem radicalizou o caminho italiano, e de forma ampla, europeu, para o socialismo, e a ruptura com a linha soviética. O PCI condenou sem ambiguidades a invasão da Tchecoslováquia e a esmagamento da Primavera de Praga pelos soviéticos, em 1968, e do Afeganistão, em 1979, em nome dos valores da liberdade e da soberania e autodeterminação dos povos. O PCI cristalizou o entendimento de que a democracia é um valor universal e permanente, sem caráter de classe, nem operária, nem burguesa. Mas um campo livre de luta de ideias e programas no sentido de processar a “revolução passiva” e avançar a realidade, melhorando as condições de vida e trabalho do povo. Berlinguer diante do impasse político onde o PCI e a Democracia Cristã Italiana tinham peso eleitoral equivalente (os comunistas chegaram a obter 35% dos votos) promoveu o marcante “compromisso histórico” para garantir a estabilidade institucional no país. O diálogo entre comunistas e católicos italianos foi abalado pelo sequestro e assassinato de Aldo Moro, líder maior da Democracia Cristã, por parte do grupo de extrema-esquerda Brigadas Vermelhas. O PCI não hesitou e condenou de forma veemente a estratégia dos terroristas e o uso da violência como arma política.
Diante da impossibilidade de se tornar a força hegemônica no governo central italiano, o PCI desenvolveu grande tradição e capacidade governativa em cidades e regiões, acumulando experiência de gestão com administrações longevas e inovadoras.
Diante da criação da Comunidade Europeia, embrião da União Europeia e do Euro, o PCI avançou em sua busca de um caminho europeu, e não só italiano, para o socialismo, reafirmando seu compromisso com a democracia como valor universal, a liberdade permanentemente renovada e o reformismo. Neste sentido caminhou para a ampliação de sua construção partidária, primeiro com a criação do Partito Democrático della Sinistra (PDS), depois fundindo-se com o Margarida, agrupamento de católicos progressistas, dando origem ao atual Partido Democrático (PD).
Poderia caber a pergunta: mas sendo um partido que abandonou a perspectiva revolucionária, defendendo a manutenção da democracia e propugnando mudanças progressivas por sucessivas reformas, o eurocomunismo não seria apenas um braço da socialdemocracia? Não. A matriz histórica do eurocomunismo repousa na história do PCI, no seu diálogo permanente com a socialdemocracia, principalmente alemã, e nas sementes teóricas e políticas lançadas por Gramsci, Togliatti e Berlinguer. Influenciou decisivamente o Partido Comunista Espanhol, o que resultou em forte papel dos comunistas espanhóis no Pacto de Moncloa e na redemocratização do país. Não conseguiu sensibilizar os partidos da França e de Portugal, que se mantiveram até o fim subordinados a Moscou. Impactou em partidos comunistas de menor expressão em outros países europeus e inclusive no PCB no Brasil, que se converteu em PPS e, recentemente, no Cidadania. Os líderes e intelectuais do eurocomunismo não renegam o marxismo em seus conceitos fundamentais e método de análise, embora tenham jogado ao mar a herança nada edificante do leninismo, do stalinismo e do maoísmo. Em nossos dias, há uma grande e evidente convergência com social-democratas, católicos progressistas e sociais-liberais.
Para quem quiser ser introduzido no estudo do eurocomunismo recomento a leitura dos livros “Por um novo reformismo” de Giuseppe Vacca, “Do Stalinismo à Democracia” de Marco Mondaini, “A modernização sem o moderno” de Luiz Werneck Vianna, “Reformismo de Esquerda e Democracia Política” de Luiz Sérgio Henriques, “Itinerários ´para uma Esquerda Democrática” de Alberto Aggio e “Gramsci no seu tempo” organizado por Alberto Aggio, Luiz Sérgio Henriques e Giuseppe Vacca.