Primeiro brasileiro a ser incluído no Hall da Fama da Internet, Demi Getschko é referência em tudo que se fala sobre rede mundial de computadores no Brasil. À frente da implantação da rede desde quando “pingam os primeiros pacotinhos da internet”, Demi explica ao Papo de Futuro por que a internet aberta é um sucesso, mas critica a falta de privacidade no conteúdo gerido hoje pelas grandes empresas mundiais.
Encerrar o ano de 2023 com a entrevista do professor Demi Getschko é um privilégio. Foi uma longa espera, mas valeu a pena. Demi falou com exclusividade ao programa e explicou por que a internet tem que ser aberta e interoperável, sem haver prioridade entre os pacotes, como prevê o princípio da neutralidade de rede.
Leia também
Essas características que são dadas pelos protocolos que existem na rede fazem dele não apenas uma rede democrática, como também uma rede globalmente interconectada, e isso é incrível num mundo de tantas divisões.
Por isso, Demi explica que internet, na acepção da palavra, é o conjunto de protocolos que está na camada primeira, que é a camada de infraestrutura, e não se confunde com as redes sociais e os aplicativos que usamos para nos comunicarmos dentro dessa grande formada por milhares de outras redes de computadores.
E manifesta uma preocupação sobre como essa infraestrutura tem sido usada pelas empresas que distribuem conteúdo para atender, muitas vezes, interesses meramente comerciais.
Publicidade“A internet trouxe um poder enorme ao indivíduo que não havia antes, trouxe voz a todos nós. O indivíduo passou a poder colocar conteúdo. Os impactos são difíceis de avaliar. Uma coisa é como se pode usar, e outra é como outros podem se aproveitar. Sou um grande fã da internet. Ela é um substrato sob o qual crescem coisas. Nem a web é a internet; a internet, na verdade, termina na camada de protocolos. Sobre essa camada de protocolos crescem coisas variadas, algumas ótimas, outras não tão ótimas, que precisam ser debatidas separadamente. É a camada de protocolos que permitiu o acesso aberto e livre, não precisa de licença para criar um produto ou carteira de motorista para entrar na internet. No entanto, o que cresce em cima disso é diversificado, pois cada um faz o que quer. Vint Cerf , considerado o pai da internet, diz que a internet é um espelho da sociedade. Você pode quebrar o espelho, mas isso não vai resolver o problema,” conta Getschko.
Trata-se de um assunto muito importante que muitas vezes não é tão divulgado pela grande imprensa. Como fica a internet quando a gente discute, por exemplo, a edição de conteúdo por parte das plataformas digitais, essas grandes empresas, e como elas conseguem categorizar e listar este conteúdo, se estamos tratando de empresas que se classificam como publisher, ou seja, empresas que apenas distribuem conteúdo?
Vint Cerf, citado por Demi Getschko, defende que todos devem usufruir do poder da internet. Mas não é o que ocorre hoje. Apenas poucos têm acesso aos dados que postamos, o mercado é concentrado e as empresas monetizam esses dados, gerando grandes lucros para si, sem remunerar o usuário pelo conteúdo que gera. Portanto, a distribuição de poder na rede é extremamente assimétrica, e nada democrática.
Além disso, há questões éticas envolvidas, porque até mesmo o conteúdo mais sigiloso, como o das comunicações pessoais na rede, parece servir para alimentar a indústria de dados das corporações que são suados em propaganda dirigida baseada em emoções.
O professor Demi fez uma analogia muito interessante a este respeito e nos convida a refletir sobre este modelo em que o carteiro, ao entregar a carta, lê o conteúdo antes da entrega. Ou seja, se hoje nos sentimos invadidos, vigiados, inundados por todo tipo de propaganda, a responsabilidade não é da tecnologia, mas da forma como ela está sendo usada por quem hoje monopoliza a entrega de conteúdo na rede.
Demi Getschko faz um paralelo com o carteiro, lembrando que, assim como o carteiro tradicional não pode abrir a carta para ver o conteúdo, as plataformas como Meta (Facebook, Instagram e WhatsApp) e Alphabet (Google, YouTube) não poderiam acessar esse conteúdo, sendo eles mero distribuidor. No entanto, na prática, essas plataformas fazem é editar, categorizar, monetizar e lucrar sobre o conteúdo da comunicação que circula sobre suas redes.
“O intermediário normal antigo, o carteiro, se ele te entregar uma carta mentirosa, certamente você não vai agredi-lo por ter recebido uma carta cheia de mentiras, pois ele não sabe qual é a carta que está entregando. O intermediário tradicional é isento de problemas, porque ele só faz uma ligação entre o destinatário e o remetente. Certamente, alguém que já conhece o conteúdo e que aproveita para comunicar esse conteúdo a outra pessoa que não é o destinatário, esse já não é um papel do intermediário, ou seja, o próprio agente já é um emitente. Esse não é o papel do intermediário, então ele, neste caso é responsabilizável”.
Por isso, ao regular as plataformas, precisa-se definir se o papel delas é de editar tudo que circula ali, como uma revista eletrônica, ou seja, se eles devem observar o sigilo da comunicação, assim como as empresas de telefonia, que só podem monitorar uma linha se houver ordem da Justiça. O problema é que suspeita-se que até mesmo a comunicação interpessoal nas redes das big techs são monitoradas, não havendo o respeito à privacidade.
O debate extrapola as fronteiras éticas e nacionais e é um grande desafio de aprovar leis para proteger os dados das pessoas. Ou seja, a publicidade dirigida baseada no conteúdo pode ser uma conduta abusiva das plataformas, que negam serem editoras do conteúdo, mas apenas distribuidores. Além disso, também temos que olhar para conectividade em regiões remotas e rurais no Brasil.
O diretor presidente do Nic.br lembra que o brasil é referência em termos de funcionamento da rede física, estando entre os primeiros países do mundo em termos de pontos de troca de tráfego e também cabos.
Entretanto, em termos de velocidade e universalização de acesso, ainda estamos a desejar, pois nem toda a população tem acesso ao que chamamos de conectividade significativa, afirma Demi Getschko.
“Certamente, o que se espera de uma conexão à internet atualmente não é o mesmo que se esperava em 1989 ou 1990. Existe um conceito de conectividade significativa, que implica não apenas estar conectado, mas ter capacidade de usar a conexão para acessar serviços de interesse, como governo eletrônico e entretenimento. É importante ter em mente que, embora mais de 80% dos brasileiros já estejam conectados, é crucial examinar quantos estão efetivamente usando a conexão conforme ela se propõe a ser. Portanto, é essencial fazer esse exame qualitativo da conexão.”
Vale lembrar que o Nic.br, presidido pelo professor Demi Getschko, é responsável pela designação dos domínios, que são os endereços na rede, entre outras funções. O órgão é um braço do Comitê Gestor da Internet, que reúne empresas, governo e sociedade para discutir a governança da rede, que deve ser democrática e voltada para a liberdade, privacidade diretos humanos.
Com a entrevista do professor Demi Getschko, o Papo de Futuro se despede de 2023, com a mensagem do professor de devolver a retomada da rede mundial de computadores, tanto na camada física, quanto na de conteúdo, às suas origens: que ela seja universal, diversa, inovativa, não concentrada e sem privilégios e, sobretudo, não esteja a serviço de interesses privados, em detrimento da sociedade, do povo e da democracia.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para redacao@congressoemfoco.com.br.
Deixe um comentário