Carlos A. Lungarzo*
A reaproximação entre o Brasil e a Argentina, por meio da primeira visita ao exterior no terceiro mandado de Lula, tem um significado especial para o futuro dos dois povos, e todo elogio a esse encontro é pequeno. Após uma história de conflitos e amizades confusas, que só desapareceram no começo do atual século, a boa vizinhança voltou a ser perturbada pelo golpe jurídico-parlamentar brasileiro de 2016. Este problema, porém, foi pequeno, comparado com o assalto ao poder no Brasil pelas hordas bolsonaristas três anos depois, quando o novo presidente não poupou agressões, insultos e provocações aos vizinhos.
Esta nova fase, por cuja longevidade é preciso zelar, é importantíssima para os dois países, e também para todos os estados e governos democráticos que entendem a seriedade dos problemas climáticos e os perigos que representam governos regidos por psicopatas e sádicos. Neste momento ambos se confrontam com ameaças de diversos graus a suas instituições e à sua existência democrática. O Brasil acaba de ser assombrado pelo fantasma de um novo golpe e pelo risco de sofrer uma verdadeira devastação barbárica, enquanto o governo argentino deve encarar a complicada tarefa de lidar com um Judiciário que pratica o lawfare e corre o risco de ver sabotadas as eleições gerais de 2023.
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Mas, para além dos problemas comuns, Lula e Fernández compartilham muitas características, pessoais e políticas, que se percebem em suas atitudes diretas, abertas e humanizadas adotadas por eles em suas gestões, apesar dos riscos próprios dessa transparência. Entre esses, está nada menos que a tentativa de homicídio da vice-presidente, Cristina Kirchner, sobre o qual nem a polícia nem a justiça “conseguem” obter informações críveis.
Lula é conhecido mundialmente pelas ações sociais nos dois primeiros governos do PT. Nessa época, o Brasil foi tirado da lista internacional da pobreza; houve um avanço espetacular da educação (foram criadas 18 universidades federais e dúzias de institutos superiores); foi grandemente aperfeiçoado o SUS; foram levados à máximo os programas ecológicos e ambientais; e aconteceram várias centenas de outras medidas progressistas, humanitárias e culturais que todos conhecem.
Fernández mostrou sua face humanitária e corajosa ao cumprir sua promessa de campanha, feita às mulheres e meninas de todo o país, de fazer respeitar o direito a seus corpos. Assim, uma de suas primeiras medidas como presidente foi enviar ao Congresso o avançado projeto de lei do “aborto, gratuito, universal e seguro”, que foi aprovado em sua quase totalidade. Aquele 90% que foi aceito por ambas as casas do Congresso é suficiente para colocar a ArgentinaR no nível de países como França, Reino Unido e até Holanda na luta contra a desumana, insana e tortuosa exigência de “maternidade forçada”. Antes dessa decisão de Fernández, adolescentes e mulheres pobres e vulneráveis que engravidavam contra sua vontade, e até vítimas de estupro eram humilhadas por juízes, policiais, médicos e padres, quando não novamente estupradas ou mutiladas em hospitais e delegacias.
Dito seja de passagem, o Brasil não pode declarar-se omisso aos direitos humanos e, embora seja necessário esperar que a democracia realmente se consolide, o direito das mulheres sobre seus corpos é fundamental, como foi reconhecido (porém, não estabelecido) pelas próprios Nações Unidas.
A diminuição de abortos clandestinos e prejuízos à saúde feminina tem sido expressiva nestes anos. Apesar de todos os esforços, há uma tendência nas elites machistas, a negar esse direito, mas o governo e as próprias militantes exercem uma ciosa vigilância. A coragem de Alberto Fernández, considerado católico, pode apreciar-se melhor quando se toma conhecimento de um atributo especial da Argentina: é um dos dois únicos países do mundo com maioria cristã onde a Igreja Católica tem proteção explícita do Estado, garantida no artigo 2º da Constituição de 1994.
Lula também demonstrou coragem em outros sentidos, por exemplo, em acusações verbais: ele ousou referir-se enfaticamente a Bolsonaro com o termo “genocida”, apesar das críticas bacharelescas de alguns. Recentemente, porém, o ministro da Justiça, Flávio Dino, reafirmou que, apesar de não ter ele poder de julgamento, achava evidente que a privação de remédios, alimentos e proteção ao povo ianomâmi, cujas crianças estão morrendo e sofrendo de desnutrição de maneira pavorosa, podia considerar-se genocídio. Falta apenas que os responsáveis, que todos conhecem, sejam detidos ou extraditados, e submetidos a um julgamento rápido e robusto.
Fernández se arriscou novamente quando era candidato a presidente. Ele levou sua solidariedade a Lula quando este era refém da Lava Jato, pouco antes das eleições de 2019. Os liberais que formam a ultradireita argentina tentaram usar essa visita como mostra da aliança dos “vermelhos” do sul, mas isso não impediu a vitória dos progressistas. No ato do dia 23 de janeiro, a emoção dos presidentes na Casa Rosada, ao relembrar esses fatos, ultrapassou a etiqueta da cerimônia, e chegou quase ao pranto.
Mas, a afinidade mais profunda e relevante entre eles é a extrema preocupação de ambos pela consolidação da democracia em seus países, que sofreram agressões profundas durante décadas, e experimenta novas dificuldades neste momento.
Quando Lula vez uma referência explícita ao golpe do 8 da janeiro, Fernández, discretamente, comentou que confiava nas cúpulas militares argentinas, porque todos seus oficiais haviam-se formado em plena democracia, ou seja, após 1983, quando a ditadura deixou o poder.
No entanto, surge uma curiosidade.
A ditadura brasileira deixou formalmente o poder em 1985, apenas dois anos depois da redemocratização da Argentina. No entanto, embora deva reconhecer-se que não houve tentativas de golpes até a era de Bolsonaro, não pode negar-se que a influência dos militares em questões civis se manteve presente, fazendo pressão em assuntos diversos, cuja competência correspondia apenas à sociedade civil. Lembre-se o caso do ministro da Defesa, José Viegas, que enfrentou os militares com argumentos dos direitos humanos no caso Herzog e acabou demitido.
Por que essa diferença? Afinal, ao longo dos séculos e em todo o planeta (salvo nas sociedade fortemente democráticas de parte da Europa, que perfazem uma ínfima minoria da população mundial) os militares são todos parecidos. Mas, a despeito dos traços comuns (louvor da violência, desprezo pela paz e a justiça, ameaça como método de “diálogo”), nem sempre essas semelhantes são absolutas. Brasil e Argentina têm histórias diferentes e seus exércitos possuem extração social e tradições diversas.
Como a Argentina obteve a democracia
Quando Fernández fala da democracia argentina, devemos entender que ela não foi obtida por acordo, nem por autocrítica dos militares. Na Argentina, o papel das FFAA desde a colônia foi sempre muito violento, e o país debateu-se sob guerras civis e ditaduras quase de maneira contínua até 1983.
A última ditadura (conhecida como “O Processo”, que aconteceu entre 1976 e 1983) ficou símbolo de sadismo mas pavoroso em todo o planeta e comoveu boa parte do mundo civilizado, por sua política de tortura e extermínio de qualquer pessoa que pudesse ser considerada pouco “favorável” aos ditadores, bem como das suas famílias, incluindo crianças de qualquer idade.
As torturas aplicadas pelas FFAA, pelas polícias, pelos civis cúmplices e por clérigos (entre os quais destaca Christian von Wernich) foram qualificadas como “piores que as do nazismo” até por lideranças sionistas cujos pais tinham morrido em Auschwitz.
O ódio espalhado pela ditadura argentina não ficou limitado ao interior fronteiras do país, mas se estendeu até criar graves conflitos internacionais. Esta situação, única nas Américas desde a independência, e também na Europa desde 1946, provocou a ação corajosa dos familiares das vítimas, que ainda hoje recebem reconhecimento internacional. Um exemplo típico é o grupo das Madres de Praza de Mayo.
O recente filme Argentina 1985, descreve muito bem a situação em que se desenvolveu a tentativa de fazer justiça e punir os membros das ditaduras por seus crimes. O processo de investigação, julgamento e acusação foi dificultado pela maior parte do judiciário, dos operadores de direito e de uma parte expressiva da opinião pública. Finalmente, foi conseguida uma sentença que não correspondia em absoluto à severidade dos genocídios.
No entanto, a situação final foi ainda pior: o governo da época, amedrontado pelos militares, anulou aquele processo, que só seria retomado em 2005, com Néstor Kirchner. De maneira inqualificável, o presidente Alfonsín, propôs o fim dos processos e até a justificação dos crimes, que foram protegidos com a Lei de Obediência devida. Com base nela, qualquer torturador de crianças, grávidas, doentes ou quem quer que fosse, deveria ser inocentado se tivesse recebido ordens superiores. A exceção foi o estupro, pois a Igreja, não aceitava sexo fora do casamento, que é considerado pecado pior que a tortura e o genocídio.
Obviamente, esta aberração encorajou o aumento do sadismo, da crueldade com crianças, da desaparição de cadáveres, e outros atos de crueldade que transformaram em pesadelo a vida de milhões de pessoas na Argentina. Após 1985, quando os julgamentos começaram, até 2005, quando se recomeçaram, o país viveu no caos.
Nesses 20 anos de impunidade, aconteceram várias tentativas de golpes, vários indultos dados pelo governo ultraconservador de Carlos Menem e até massacres policiais contra civis que protestavam pelas crises econômicas, acontecidas em 2001 e ordenadas pelo governo corrupto de Fernando De La Rua. Uma passeata de poupadores populares, desesperados por ter seu dinheiro apreendido pela corrupção estatal, registrou o incrível número de 33 assassinados pela polícia federal, muitas vezes a queima roupa. A insanidade foi tão grande que em 12 dias foram nomeados 5 presidentes. Nem os políticos mais oportunistas se arriscaram a presidir um país em pleno caos. Isso acabou quando foi nomeado Kirchner, e os julgamentos dos criminosos foram reabertos.
Um período de relativa calma, estabilidade e respeito aos direitos humanos em Argentina se estabeleceu apenas nos últimos anos. É a isso que se referiu Alberto Fernández na reunião com Lula. O controle das Forças Armadas pela sociedade civil parece ter sido alcançado, mas não sabemos se os esforços do presidente por humanizar a polícia e erradicar a tortura foram atingidos.
Mas, atrás de tudo isso, houve a contínua e esforçada tarefa de responsabilizar todos os membros ou colaboradores da ditadura e condenar todos aqueles contra os quais houvesse provas. Ainda hoje, mesmo lentamente, a tarefa continua, e uma parte da sociedade civil tem sido responsável de não esquecer, não perdoar e não abdicar da justiça. Há menos de uma semana, grupos de familiares das vítimas encontraram outro assassino daquela época.
Por exemplo, há alguns poucos anos, o governo de Macri tentou aplicar uma regra jurídica própria dos crimes comuns e não de crimes contra a humanidade, para reduzir algumas penas de criminosos preso. Logo em seguida surgiram grandes massas de manifestantes que encheram o centro de Buenos Aires. O governo recuou de imediato.
A democracia no Brasil
No Brasil, muito tardiamente, decidiu-se implantar uma Comissão Nacional da Verdade (CNV), que contribuiu à democracia com uma investigação sobre o realmente acontecido durante a ditadura, mas não foi completada com um julgamento dos criminosos e sua penalização. De acordo com os princípios da ONU sobre direitos humanos, crimes contra a humanidade não prescrevem, e a lei de Anistia não é aplicável aos carrascos.
É verdade que a situação no Brasil é bem diferente, em termos quantitativos, da que teve a Argentina, onde houve, como mínimo, 30.000 desaparecidos. Ainda, é possível que sejam muitos mais, pois, em 1978, quando a ditadura completava apenas o 2º dos 8 anos que durou sua mórbida tarefa, o serviço de inteligência do Chile, que colaborava com a Argentina, indicava que o número de vítimas oficialmente aceito por ambas as ditaduras era de 20.000. A Argentina democrática fez em 2003 uma avaliação de 13.000 desaparecidos. Não obstante, deve tomar-se em conta a destruição dos arquivos feita pelos militares antes de ir embora em 1983.
A despeito da menor quantidade de vítimas (estimada na CNV em cerca de 500), as autoridades democráticas brasileiras deveriam ter submetido a julgamento os responsáveis desses crimes. Ou será que a gente pode matar, desde que seja em pequenas doses? Qual é o número mínimo de vidas humanas que justificam punição?
Não pretendo afirmar que os políticos democráticos brasileiros ou os juízes sejam melhores que os brasileiros. É difícil comparar dois países onde a justiça aparece misturada com sentimentos religiosos e militaristas e interesses econômicos.
No entanto, e apesar das oportunidades perdidas, talvez valha pena refletir sobre esta questão, para responder a perplexidade de Lula, quem, muito honestamente, declarou na conferência junto a Fernández, que ele “não saberia dizer” de que maneira o bolsonarismo conseguiu “a maioria em todas as forças militares”.
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Talvez Lula tenha clareza sobre a causa desta infiltração, mas ele não ache correto revelar suas conjecturas sobre um assunto tão sensível e crítico. No entanto, podemos arriscar que houve, desde 1985 até os dias de hoje, uma tolerância excessiva aos abusos de poder, por parte dos poderes democráticos, que despertaram uma sensação de omnipotência em todas as forças armadas e de segurança.
No começo, a responsabilidade surgiu claramente dos políticos que negociaram com Figueiredo e seus comparsas no final da ditadura. Não havia nenhum motivo nobre para aceitar a anistia em troca da “permissão” para realizar eleições. Quase todo o mundo sabia-se que a situação mundial era adversa a uma ditadura no Brasil e, mais cedo ou mais tarde, os militares deveriam ter deixado o poder.
Houve, também, falta de informação dirigida às massas populares, e escassa propaganda sobre os valores da democracia. Inclusive, talvez a mobilização intensa pelas eleições não tenha aprofundado a consigna SEM ANISTIA. É verdade que a esquerda estava preocupada com a fundação do PT, que foi realizada em fevereiro de 1980. Talvez todos tenhamos parte da culpa em não focar nossos esforços no impedimento da repetição do golpe, ou talvez não fosse totalmente possível naquele momento. É verdade também que, esticar a tensão podia ter impedido a libertação imediata dos presos políticos que ainda ficavam.
Porém, já na época de FHC, a exigência de processar os criminosos da ditadura teve um momento adequado. Não conheço todos os detalhes, mas parece natural que, em algum momento houvesse uma oportunidade para, como mínimo, impedir um novo golpe. Por exemplo, o golpe jurídico-parlamentar de 2016, deveria ter sido denunciado a ONU, como fez o governo argentino nestes dias com o caso do Lawfare aplicado contra Christina Kirchner.
Os problemas recentes
O ataque aos 3 poderes no 8 de janeiro por vários milhares de vândalos, terroristas, e criminosos políticos de alto impacto destrutivo mostra um gravíssimo problema para o Brasil, que está sendo encarado com louvável velocidade pelos principais ministros e hierarquias do governo, e por vários membros do STF, em especial, o presidente do TSE.
Mas não quero me estender sobre detalhes do golpe, que é comentado por centenas de veículos confiáveis no Brasil e no exterior. Vejamos apenas o impacto disto em ambos os países. Também tentemos entender por que, quando a ultradireita liberal foi derrotada nas eleições em 2019, os partidários de Maurício Macri não promoveram nenhum conflito e passaram a faixa presidencial com correção.
1) O golpe terrorista no Brasil tem reflexos na Argentina, porque os bolsonaristas não são apenas membros de um grupo da direita tradicional. Parte dessa direita, por razões diversas, se mostra “tolerante” com o governo Lula. Seu grupo está formado por especialistas em força bruta (legalizada ou não), bárbaros destrutores, terroristas, místicos delirantes, arautos de todos os ódios e viciados em sangre e estragos. Estes grupo têm representantes em muitos países, em especial na Polônia, a Hungria, a Turquia, na Rússia, as Filipinas, EUA, Espanha, Itália, e outros.
Portanto, se eles tivessem triunfado, seria também um grande perigo para Argentina, onde é expressivo o grupo de fãs sulistas de Bolsonaro. Mas, como mostramos na parte anterior deste artigo, um golpe dessa índole na Argentina seria mais difícil que no Brasil, porque os crimes das FFAA estão sendo continuamente investigados. Os anti-golpistas argentinos são muito ativos e mantém a vigilância sobre qualquer movimento dos saudosos da ditadura.
2) Por que não foi possível, após 1985 (redemocratização do Brasil) fazer uma verdadeira política de educação democrática, cobrando com as devidas penalidades os crimes das ditaduras que atuaram entre 1964 e 1984? Isto foi parte de uma crença otimista de que os inimigos da democracia não tinham espaço.
Por sua vez, a derrota de Macri na Argentina não foi resistida porque a oposição à chapa de Fernández não atingiu, por enquanto, o nível de violência próprio de Bolsonaro, Trump, Erdogan e outros.
No Brasil, houve um excesso de otimismo ao supor justiça e democracia são algo natural, e que os militares avessos aos valores civilizados eram um minoria dentro das corporações. Durante o período pós-ditadura, esta leniência com as atrocidades do passado fizeram com que as figuras como Bolsonaro e outros fossem crescendo de maneira lenta porém segura, e suas conexões com o submundo miliciano também crescessem de maneira mais rápida.
Agora, nesta nova circunstância, a sociedade brasileira parece disposta a adoptar um caminho mais realista e aplicar a força da lei aos responsáveis do golpe do 8 de janeiro.
*Doutor em Ciências Exatas e em Ciências Humanas. Publicou 11 livros sobre lógica, estatística e sociologia matemática, e 86 artigos especializados. Foi professor da UNICAMP (1976-1997), da UERJ (2000-2004) e da McGill University. Pertence a várias organizações de direitos humanos e de defesa da ecologia. Autor de Os cenários ocultos do caso Battisti
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