Estamos passando por um momento de autocratização em escala mundial. O Instituto V-Dem da Universidade de Gottemburgo, na Suécia recentemente divulgou seu novo relatório exibindo um raio X nas democracias pelo mundo em 2024.
O Brasil, considerado uma democracia eleitoral (o topo do ranking sendo uma democracia liberal), passou por duras provas com Bolsonaro. A publicação traz um apanhado de fatores que contribuíram para que o Brasil voltasse a uma fase “democratizadora” após as eleições de outubro de 2022: combate à desinformação e à má informação (destaque para a atuação da Justiça eleitoral brasileira), aliança da oposição pró-democracia (a frente ampla de nove partidos com Lula), independência judicial (investigações do Supremo sobre as fontes de campanhas de desinformação), gestão resiliente do processo eleitoral (importante atuação do Supremo contra desconfianças sobre o sistema de urnas eleitorais brasileira), apoio diplomático (e da comunidade internacional sobre o histórico de lisura nas eleições brasileiras), eleições livres e justas (com presença de observadores nacionais e internacionais (OEA e OAB). No pós-eleição observamos: rápido apoio internacional, apoio institucional (representantes de importantes instituições reconheceram o resultado das urnas pró Lula), os militares permaneceram nos quartéis (investigações ainda em andamento sobre uma tentativa de golpe frustrada, nesse quesito talvez a ameaça mais perigosa a democracia brasileira, uma nova tentativa de golpe militar no Brasil), e, por fim, assegurar a transição de poder (apesar dos protestos realizados por apoiadores de Bolsonaro, o STF ordenou a dissolução dos bloqueios e protestos violentos pelo país).
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Bolsonaro foi condenado pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros, como pena, ficou inelegível por oito anos. O PL foi condenado por litigância de má-fé após o partido pedir a anulação de votos do segundo turno da disputa presidencial e pagou multa de R$ 22,9 milhões ao TSE. PP e Republicanos, partidos que faziam parte da coligação que apoiou Bolsonaro, tiveram acesso ao fundo partidário suspensos.
Numa eleição de resultados absolutamente imprevisíveis, os Estados Unidos estão no centro do debate sobre o que será da democracia americana num eventual segundo mandato de Donald Trump. O professor de Harvard Steven Levitsky, em seu novo livro, Como salvar a democracia culpa a falta de comprometimento do Partido Republicano com as regras do jogo democrático como a principal razão pela qual os Estados Unidos passam por um período tão delicado de ameaça de ruptura democrática. Segundo o professor, “os partidos devem em primeiro lugar aceitar os resultados das eleições, ganhando ou perdendo. Em segundo lugar, devem rejeitar inequivocadamente o uso da violência. Em terceiro lugar, devem romper com os extremistas antidemocráticos. O Partido Republicano violou todos esses três princípios desde 2020”.
PublicidadeGiuliano da Empoli em seu livro Engenheiros do caos, quando traz a tese de que os partidos políticos no passado eram “forças centrípetas”, empurravam para fora os candidatos mais extremistas ainda em fase de primárias, como consequência, os candidatos com posicionamento mais ao centro, permaneciam. Quanto mais consensos em termos de ideias, melhor era o candidato para representar o partido. Hoje os partidos viraram forças centrífugas, ou seja, topam lançar candidaturas disruptivas, violentas e não comprometidas com as regras do jogo democrático, candidatos das margens dos partidos políticos. Assim como Levitsky, Da Empoli dá um passo atrás com relação às figuras como Trump e Bolsonaro e joga uma luz sobre a reponsabilidade dos partidos políticos sobre essas candidaturas.
Ainda impactada com a escalada de violência nos debates à Prefeitura de São Paulo – nada menos do que a terceira cidade mais populosa do mundo – Me questiono acerca da reponsabilidade do PRTB sobre Pablo Marçal, candidato mais histriônico da extrema direita antissistema brasileira. Marçal se recusa a seguir qualquer regra de civilidade assinada pelos candidatos previamente, mais que isto, é um agressor típico, com requintes de sordidez, ao acusar Tabata Amaral de ser culpada pelo suicídio de seu próprio pai ou insinuar que ela é a mais preparada nos debates por não ter marido ou filhos. Acusou também Guilherme Boulos de usar drogas, entre outras provocações infundadas. Não estamos aqui discutindo o debate de ideias e propostas inerente ao processo eleitoral plural e democrático, onde o dissenso faz parte e é bem-vindo, estamos vivendo um processo eleitoral repleto de violência física, moral e psicológica com componentes sexistas altíssimo.
Me pergunto como pode o PSDB, do ex-presidente sociólogo Fernando Henrique Cardoso, defender uma cadeirada que seu candidato, José Luís Datena, infligiu contra Marçal após um desses episódios de provocações. Claro, no auge da defesa de seu comportamento Datena apela para o discurso “viril masculino” justificando a agressão física, como “legítima defesa de sua honra”. A executiva municipal do PSDB saiu em defesa do seu candidato e ainda expulsou os “dissidentes” que pediram a exclusão de Datena após o episódio lamentável. Ricardo Nunes, candidato do MDB, por sua vez, e atual prefeito de São Paulo, responde às provocações de Marçal no mesmo nível, com palavras de baixo calão.
Para além das candidaturas, que, o eleitor tem que engolir goela abaixo, dada a raridade da realização de prévias partidárias, qual a responsabilidade dos partidos políticos sobre essas candidaturas? Quais são os limites da Justiça eleitoral para além dos problemas com os crimes penais já previstos e aplicados nesses episódios violentos em São Paulo? Episódios que não se restringem aos ambientes fechados dos debates, se espalham pelas campanhas de ruas também.
A Justiça eleitoral precisa ser provocada pela sociedade civil, instituições democráticas, mas também precisa se adaptar com mais rapidez aos novos desafios que se impõe. Precisamos de novas regras, parâmetros para navegar por este novo mundo, mais autocrático, que já vivemos.
Os partidos políticos no Brasil podem muito, mas não podem tudo. Têm liberdade de escolher os candidatos tanto as eleições majoritárias quanto proporcionais com maiores chances eleitorais, mas precisam começar a responder, de alguma forma, por candidaturas que extrapolam sobremaneira a liberdade de expressão concedida no período eleitoral.
Uma coisa é certa: a maior vítima desse ringue de gladiadores que virou a campanha à prefeitura de São Paulo é o eleitor paulistano.
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