Por Antônio Augusto de Queiroz (*)
Recentemente, ao ler dois textos sobre o ciclo de política pública, do cientista político, professor e escritor John Wells Kindgon, sob os títulos “COMO CHEGA A HORA DE UMA IDEIA?[1]” e “JUNTANDO AS COISAS[2]” – originalmente publicados em sua obra “Agendas, Alternatives and Public Policies”, de 1984, e cuja mais recente edição é de 2014[3], – resolvi resenhá-los pela importância das reflexões sobre a formação da agenda ou o pré-decisório, buscando compreender o que faz com que pessoas, dentro e ao redor do governo, se dediquem, em um dado momento, a alguns temas e não a outros. O objetivo é explicar, a partir da elaboração teórica de Kingdon, porque alguns temas são priorizados nas agendas governamentais enquanto outros são negligenciados, como as agendas mudam com o tempo, e como as autoridades filtram suas escolhas a partir de amplo repertório de alternativas.
O autor parte da constatação de que os cientistas políticos sabem muito como as decisões são tomadas, mas pouco sobre o processo pré-decisão, e que os acadêmicos acham o tema obscuro e os praticantes da arte de governar raramente os compreendem bem. Na caminhada para desvendar esse quebra-cabeça, ele apresenta uma visão geral de várias descobertas feitas e dos estudos de casos que embasaram sua reflexão. Inicia com alguns conceitos e definições indispensáveis para facilitar o entendimento do complexo processo de formulação de políticas públicas.
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Segundo a definição do autor, a formulação de políticas públicas é um conjunto de processos, que são relativamente independentes entre si e que inclui pelo menos: 1) o estabelecimento da agenda; 2) a especificação das alternativas a partir das quais as escolhas são feitas; 3) a escolha final entre essas alternativas especificas (processo decisório); e 4) a implementação da decisão. Nos artigos, ele trata apenas dos dois primeiros processos: a formação da agenda e a escolha de alternativas.
O autor também define o conceito de agenda. Para ele existem vários tipos e modalidades de agenda: 1) a sistêmica ou não governamental, 2) a governamental, e 3) a de decisão. A primeira contém a lista de assuntos que preocupa o país, mas que não merece a atenção do governo. A segunda inclui os problemas que merecem atenção do governo. E, a terceira, para fins analíticos, inclui a lista dos problemas a serem decididos ou submetidos à deliberação e à ação governamental.
Para explicar como as agendas governamentais são estabelecidas e responder “Por que alguns assuntos são priorizados nas agendas enquanto outros são negligenciados?”, e “Por que algumas alternativas recebem mais atenção do que outras?”, o autor desenvolveu o modelo de múltiplos fluxos, que utiliza as três dinâmicas ou condições da formulação de políticas públicas: 1) a dos problemas, 2) a das políticas públicas (alternativas), e 3) a da política.
PublicidadeCada uma das três dinâmicas se desdobra em fases e em cada uma dessas fases existem operadores ou atores agindo, que o autor classifica entre atores visíveis e invisíveis. Os visíveis – formados por autoridades como presidente, seus assessores, membros do Congresso, a mídia, os partidos políticos – definem a agenda. Os invisíveis – formados por acadêmicos, burocratas de carreira e funcionários do Congresso – exercem maior poder na escolha de alternativas. Os grupos de interesse, por sua vez, são mais influentes para barrar do que para pautar políticas públicas.
No primeiro fluxo, que trata da dinâmica “dos problemas”, o autor chama atenção para os três mecanismos de percepção que fazem com que as autoridades tomem conhecimento ou reconheçam um problema para efeito de sua inclusão na agenda governamental, quais sejam: a) indicadores (político, econômico, social, cultural, ambiental etc); b) eventos, crises e símbolos (catástrofes, epidemias, guerras etc); e c) feedback (reclamação ou avaliação de política em curso). Cada mecanismo possui funções específicas: os indicadores medem a magnitude de uma situação; os eventos-foco são símbolos poderosos, como desastres, crises e experiências pessoais; e o feedback ou reação a um estímulo pode ser formal, como monitoramento e avaliação de seus próprios programas, ou informal, como uma reclamação no Congresso etc.
Problema é definido como qualquer situação, fato ou evento que incomoda e gera insatisfação ou desconforto, a ponto de os cidadãos e o governo sentirem a necessidade de fazer algo para resolvê-lo ou amenizar seus efeitos. O autor adverte que as agendas de governo não apenas definem os problemas, mas também podem fazê-los desaparecer. Segundo ele, os problemas desaparecem da agenda basicamente porque: a) as pessoas se frustram pelo fracasso e se negam a investir mais de seu tempo em causa perdida; b) as situações que chamam atenção para um problema podem mudar (indicadores em queda ou fim de uma crise); c) as pessoas podem se acostumar com uma situação ou conferir um outro rótulo ao problema; d) outros itens surgem e colocam de lado antigas prioridades; e e) pode haver ciclos de atenção, altas taxas de crescimento e novidades que surgem e desaparecem.
No segundo fluxo, o das políticas públicas, o elemento que facilita a inclusão de um tema na agenda é a existência ou disponibilidade de alternativas ou soluções para o problema que se fundamente: a) na viabilidade técnica; b) na aceitação pela comunidade; e c) em custos factíveis.
Nessa perspectiva, o consenso em torno da alternativa ou solução no âmbito das comunidades ou geradores de políticas (pesquisadores, assessores parlamentares, acadêmicos, funcionários públicos, analistas pertencentes a grupos de interesse, entre outros) é construído com base no compartilhamento de uma preocupação, na persuasão e na difusão de ideias. O processo de persuasão ocorre quando os participantes organizam indicadores para caracterizar a existência de um problema ou apresentam proposta que satisfaçam critérios como viabilidade técnica ou aceitabilidade.
O modo como nascem as alternativas e soluções é geralmente desordenado, com ideias chocando-se umas com as outras, gerando novas ideias e formando combinações e recombinações. Embora a origem seja um pouco complicada, a escolha de alternativas se dá por critérios, mediante os quais algumas ideias são selecionadas, enquanto outras são descartadas. Esses critérios incluem a) viabilidade técnica, b) congruência com os valores dos membros da comunidade de especialistas na área, e c) antecipação de possíveis restrições, incluindo restrições orçamentárias, aceitabilidade do público e receptividade dos políticos. As propostas que forem julgadas inviáveis, à luz desses critérios, têm menos chance do que aquelas que satisfaçam esses requisitos.
O fluxo de políticas ou de alternativas, segundo o autor, não exerce influência direta sobre a oportunidade da agenda. As alternativas e soluções, elaboradas por comunidades e geradores de políticas, chegam à agenda apenas quando problemas percebidos ou demandas políticas criam oportunidade para essas ideias (janela de oportunidade). Algumas soluções recebem maior atenção do que outras porque há a difusão das ideias junto às comunidades de políticas. Ou seja, as pessoas, em especial os “empreendedores de políticas”, procuram difundir as ideias e levá-las a diferentes fóruns na tentativa de sensibilizar não apenas as comunidades de políticas, mas também o público em geral.
No terceiro fluxo, o da política, são três os elementos propulsores da agenda, cujo consenso é construído pela negociação e pela barganha, que estão associados: a) a mudança na atmosfera política nacional (clima ou humor nacional; b) às forças políticas organizadas; e c) a eleições no congresso e novos governos (mudança governamental). A atmosfera política, o clima ou o humor nacional é caracterizado por uma situação na qual diversas pessoas compartilham das mesmas questões. Dependendo de sua direção, ele pode favorecer ou não a germinação de certas ideias.
A pressão das forças organizadas, o processo eleitoral e a mudança de governo são os maiores propulsores da mudança na agenda governamental. O apoio ou oposição das forças organizadas a uma determinada questão sinaliza o consenso ou o conflito numa arena política. Dependendo de sua direção, elas podem viabilizar ou inviabilizar uma questão alternativa. A troca de governo, a alternância no poder, como a mudança na composição do Congresso, também são momentos propícios para alterações de agenda.
Para o autor, as dinâmicas dos problemas das políticas públicas e do próprio jogo da política têm, cada uma, vida própria, lembrando que em alguns momentos elas podem se unir, citando exemplos de demandas urgentes ou de situações de mudança de governo. A junção completa das três dinâmicas aumenta significativamente as chances de um tema se tornar parte de uma agenda de decisão.
Um fator que contribui para tanto é a ação dos empreendedores de políticas (também conhecidos como “policy entrepreneurs”), que buscam tirar vantagens, em certos momentos, da receptividade política para oferecer seu “pacote” de problemas e soluções. Se forem consideradas apenas as dinâmicas dos problemas e da política, sem levar em conta a dinâmica de políticas públicas ou alternativas, as agendas governamentais podem ser estabelecidas exclusivamente por atores visíveis. O autor lembra que as janelas de oportunidade para o ingresso de um tema na agenda são pequenas e escassas, e que há janelas de problemas e janela de política. E que os defensores de políticas que tiverem soluções prontas, que atendam às três dinâmicas, suas propostas têm chances de serem levadas para o topo da agenda de decisões.
Quanto à figura do empreendedor de políticas, o autor os define como pessoas perseverantes e dispostas a investir recursos para promover políticas que possam lhes favorecer, seja por preocupação real com os problemas, seja por busca de benefícios próprios, ou mero prazer de participar. Eles estão em vários locais e em diversas posições, entre as quais as de políticos eleitos, de funcionários públicos, de lobistas, de acadêmicos, de jornalistas, etc.
Na conclusão, o autor deixa claro que não há uma ordem organizada dos eventos ou estágios, em que primeiro se identifica o problema e depois se busca a solução. Na verdade, na opinião dele, frequentemente a defesa de solução precede a atenção aos problemas. E, finalmente, afirma que seu estudo trabalha com probabilidade, com formulações do tipo “as chances aumentam ou diminuem” e “tais eventos são mais prováveis que outros”.
A contribuição de Kingdon, nessa obra seminal, que aqui resenhamos sucintamente, nos permite uma compreensão bastante clara do processo de políticas públicas. Embora lastreada, empiricamente, na experiência dos governos estadunidenses, desde Bill Clinton até Barack Obama, a qualidade e profundidade de sua análise e modelos teóricos são perfeitamente aplicáveis ao caso brasileiro.
(*) Jornalista, consultor e analista político e mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV. Foi diretor de Documentação do Diap e é sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”.
[1] KINGDON, John. Como chega a hora de uma idéia?. In: Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi, orgs., Políticas Públicas, vol. I (Brasília: ENAP, 2006), pp. 219-223.
[2] KINGDON, John. Juntando as coisas. In. Enrique Saravia e Elisabete Ferrarezi, orgs., Políticas Públicas, vol I (Brasília: ENAP, 2006), pp. 225-245
[3] KINGDON, John W. Agendas, Alternatives, and Public Policies, Update Edition, with an Epilogue on Health Care. Pearson New International Edition. Essex: Pearson Education Limited, 2014, 235 p.
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