Mário Goulart Maia *
O julgamento concluído pela egrégia Segunda Turma do STJ, em 8 de junho deste ano, envolveu a temática do rol da cobertura dos seguros dos planos de saúde, elaborado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), discutindo-se qual a natureza desse rol – se taxativo ou indicativo. O tema percute também o sempre relevante assunto do retrocesso de liberdades individuais, direitos subjetivos e garantias das pessoas, quando implementado esse recuo por meio de processo legislativo formalmente regular.
O caso em apreciação terminou com a decisão do douto órgão julgador afirmando, por maioria de seis votos a três, que o rol é taxativo, embora comporte exceções pontuais e plenamente justificadas. Essa solução disse muito menos do que desejou dizer, pois o que mais importava como núcleo ou miolo da demanda, era a definição da natureza fechada – ou não – do tal rol da ANS.
Deixando de lado o visível murismo da decisão, o que se deve analisar é se a competência que a ANS tinha para delimitar as coberturas securitárias poderia – ou não – ser exercida da forma como o foi, isto é, encurtando o lençol de proteção à saúde das pessoas abrangidas pelos planos privados, também chamados de planos de saúde suplementar. Pode-se dizer, em termos bastante sintéticos, que esses planos de saúde têm o objetivo primacial de, mediante o oportuno pagamento de prestações pecuniárias periódicas mensais (prêmios), assegurar cobertura securitária em caso de ocorrência de fato comprometedor da saúde dos seus filiados (sinistro).
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A Lei 14.307, de 3 de março deste ano, alterando a Lei 9.656, de 1998, estabeleceu, no seu art. 1o., § 4o., que a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar, inclusive de transplantes e de procedimentos de alta complexidade, será estabelecida em norma editada pela ANS. Essa lei foi oriunda da MP 1.067, do ano passado. Não vem ao caso discutir, neste momento, se a outorga normativa feita pelo Congresso Nacional em favor da ANS, uma agência do governo, afaga – ou não – a estrutura da separação das funções estatais, no Estado Democrático de Direito. Leve-se em conta que a ANS deve exercer o controle dos agentes privados que operam o multimilionário mercado dos planos de saúde.
O que se quer apreciar, agora, é se a ANS, ao exercer a sua competência institucional, agiu efetivamente sob os ditames da Constituição, especialmente por se tratar de matéria afeita aos Direitos Humanos, a exigir da parte do agente normador e dos agentes aplicadores das regras o máximo de atenção à plena efetividade desses direitos, tão referidos e tão vilipendiados. Deve-se logo afirmar que nenhuma autoridade está acima da Constituição e todas elas, ao exercer as suas competências, devem se balizar pelos superiores dispositivos, preceitos, valores e princípios expressos ou adotados constitucionalmente, entre os quais a justiça das coisas.
Não é novidade dizer que os grandes movimentos sociais dos dois últimos séculos produziram, entre muitas outras relevantes mudanças jurídicas, a convicção de que a realização dos Direitos Humanos exige muito mais do que propostas generosas, impondo mesmo a mudança de mentalidade nas pessoas responsáveis por essa realização. Os Direitos Humanos não dependem mais de teorizações, mas sim de atitudes concretizadoras. Como disse o sempre lembrado – mas pouco seguido – jurista e filósofo italiano professor Norberto Bobbio (1909-2004), o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político (A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 43).
O constitucionalismo contemporâneo rejeita que a atividade legislativa possa fazer recuar as conquistas jurídicas e sociais adquiridas à custa de cruentas lutas de gerações passadas, criando o princípio da proibição de retrocesso. Esse princípio tem origem e berço conhecidos: são as evoluções do Direito por meio da ação criadora e transformadora dos julgadores, como anotou o filósofo belga professor Chaim Perelman (1912-1984), ao dizer que a crescente importância atribuída aos princípios de Direito, no direito continental do pós-guerra, manifesta-se não apenas no número cada vez mais considerável de publicações consagradas a esta matéria, mas também na mudança de atitude das Cortes, mesmo as mais conservadoras e mais respeitosas da vontade do legislador (Lógica Jurídica. Nova Retórica. Tradução de Virgínia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 117).
O jurista escocês professor Donald Neil MacCormick (1941-2009) escreveu com muita propriedade que é uma verdade muito óbvia que nem todas as normas jurídicas, nem mesmo todas as normas legisladas em forma verbal escrita, podem sempre dar uma resposta clara a cada questão prática que surja. Quase qualquer norma pode se provar ambígua ou obscura em relação a algum contexto questionado ou questionável de litígio. Como as normas são formuladas em linguagem, apresentam, Hart salientou, uma trama aberta e são vagas pelo menos no que diz respeito a certos contextos (Argumentação Jurídica e Teoria do Direito. Tradução de Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 83).
Para o jurista e filósofo argentino professor Edgardo Fernández Sabaté (1918-1982), ao dar expressão crítica ao dilema judicial entre legalidade e justiça, “no pueden darse dos principios contradictorios a la vez e bajo el mismo respecto por ser ónticamente, psicológicamente, lógicamente impossible. Dado que esto es así, entonces, a cuál de ambos principios daremos el título de lei? A ambos? Contradictorio, y lo que es contradictorio muere por suicídio. Luego sólo queda un camino: la ley es justa o no es ley. También quedan otros dos caminos más faciles en apariencia: uno, eliminar la justicia; outro, eliminar la legalidad. Ambos han sido propuestos” (Filosofía del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1984, p. 220).
A eminente professora Maria Helena Diniz expressou modo de pensar absolutamente semelhante, dizendo o intérprete-aplicador poderá concluir que um caso que se enquadra na lei não deverá ser por ela regido porque não está dentro de sua razão, não atendendo à finalidade social. Na sua lição, não há lei que não contenha uma finalidade social imediata. Por isso o conhecimento do fim é uma das preocupações precípuas da ciência jurídica e do órgão aplicador do Direito. O fim social é o objetivo de da sociedade, encerrado na somatória de atos que constituirão a razão de sua composição; é, portanto, o bem social, que pode abranger o útil, a necessidade social e o equilíbrio de interesses, etc.
Na justa visão da exímia doutrinadora, o intérprete-aplicador poderá: (a) concluir que um caso que se enquadra na lei não deverá ser por ela regido porque não está dentro de sua razão, não atendendo à finalidade social; e (b) aplicar a norma a hipóteses fáticas não contempladas pela letra da lei, mas nela incluídas, por atender a seus fins (…). Consequentemente, fácil será perceber que o comando legal não deverá ser interpretado fora do meio social presente; imprescindível será adaptá-lo às necessidades sociais existentes no momento de sua aplicação. Essa diversa apreciação e projeção no meio social, em razão da ação do tempo, não está a adulterar a lei, que continua a mesma (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretado. São Paulo: Saraiva, p. 189).
Quando, diante de uma regra injusta, o julgador opta pela sua aplicação obsequiosa, podendo afastar a injustiça que ela manifesta, submete-se ao vínculo entre ordem e autoritarismo totalitário, o que leva os leva à adoção de decisões altamente opostas à finalidade da própria jurisdição, que é efetivar a justiça no caso concreto. São numerosos os juristas que pensam dessa maneira e põem em prática essas ideias anti-jurídicas e perigosas, sacrificando a justiça em homenagem à ordem posta. Será sempre precisa a lição do professor Paulo Bonavides segundo a qual, as decisões judiciais são avaliadas pelo seu conteúdo de justiça, não pela sua adequação à legalidade.
O jurista e doutrinador português professor Paulo Otero aponta o vínculo de afinidade entre a ordem e o pensamento totalitário dizendo que o Estado totalitário, procurando definir novas categorias morais, segundo um princípio de que os fins justificam os meios, e elevando o próprio Estado a um verdadeiro Deus, assenta em quatro preferências estruturais (i) prefere a disciplina à justiça; (ii) a autoridade à liberdade; (iii) a obediência à consciência e, por último, (iv) a violência à tolerância (A Democracia Totalitária. Lisboa: Principia, 2000, p. 20).
A decisão de um caso judicial difícil representa para quem pede a tutela jurídica, a coisa mais importante de sua vida e pode, em muitos casos, significar a sua sobrevivência e a sua dignidade humana. O juspositivismo e o normativismo põem em causa e dúvida o real significado da decantada isenção judicial ou neutralidade dos julgamentos. E isso decorre da disposição de os juízes seguirem o rigoroso ditado do legalismo, aplicando as suas regras positivadas, o que faz do juiz uma espécie de refém de ouro dessas prescrições, sem alternativas à vista.
Tal posição alegadamente neutra tipifica, na verdade, autêntica prisão epistemológica predefinida. Esse cerceamento (i) impede a circulação da percepção judicial dos problemas concretos, (ii) exclui das considerações do juiz as chances de efetivar liberdades, direitos subjetivos tradicionais e garantias e, finalmente, (iii) corta as possibilidades de justiça efetiva, nas soluções das questões jurídicas da atualidade.
A exclusão da justiça das reflexões dos julgadores, reforçada pela posição de cumprir a lei, faz a jurisdição judicial a esvaziar-se por completo dos Direitos Humanos, eclipsando totalmente o seu sentido, ou seja, conduz a jurisdição a despir-se totalmente de sua própria dignidade institucional. Passa-se o falso por verdadeiro, o injusto por justo, o errado por certo. Dá-se prevalência à ordem, em detrimento da justiça, sobrepõe-se a ética da função à ética da responsabilidade, sugere-se que ser autoritário é preferível a ser acessível.
Para os que gostam de precedentes, bastaria referir este da lavra de um dos mais ilustres ministros do colendo STF, ao assentar que o princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de Direitos Fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses Direitos Fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (…).
E, como arremata o grande jurista e julgador, em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados (ARE-639.337. Rel. Min. Celso de Mello).
* É conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
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