Oscar Vilhena Vieira, em seu A Constituição e sua reserva de justiça (2023, 2ª ed,) lembra que a interpretação constitucional tem duas dificuldades. A primeira decorre da ambiguidade, abrangência e universalidade do texto constitucional, a “sobrecarga do texto”, na expressão do prof. João Maurício Adeodato. A segunda é a dificuldade contramajoritária. Ao exercer o controle de constitucionalidade das leis, até quando o judiciário pode avançar sem subverter o princípio democrático que legitima a feitura das leis pela maioria dos representantes eleitos pelo povo? Em face dessas dificuldades, surge o problema teórico e prático de saber até onde a jurisdição constitucional age sem discricionariedade.
A PEC 08 gira em torno deste problema. Há muito a opinião pública percebe que o STF tem exagerado no exercício do controle de constitucionalidade. Exageros que são mais graves quando cometidos por decisões individuais de seus membros. Os exemplos recentes de decisões monocráticas controversas são muitos. “Desnomearam-se” ministro do Executivo (Lula em 2016) e diretor da Polícia Federal (Ramagem em 2020); afastou-se governador (Ibaneis Rocha em janeiro de 2023); e suspenderam-se normas como o piso da enfermagem (Lei nº 14.434/2022), parte da lei das estatais (Lei nº 13.303/2016), a lei de improbidade (Lei nº 8.429/1992), a lei do juízo de garantias (Lei nº 13.964/2019) e a lei do município de Porto Alegre que instituiu o dia 08 de janeiro como “Dia do Patriota”. A ponto de a sociedade se perceber como submetida a 11 supremos. Além da polarização que tomou conta do país, esse exagero de decisões monocráticas ajuda a explicar a queda da legitimidade do STF nas pesquisas de opinião. Na da Genial/Quaest divulgada em 21 de novembro de 2023, a aprovação, que já era baixa no início do ano (23%) caiu para apenas 17%. A reprovação subiu de 29% para 36%.
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Ao invés de refletir sobre o problema teórico e sobre a deterioração de sua imagem, os ministros do STF reagiram desproporcionalmente a uma PEC que se limitou a aperfeiçoar o procedimento de controle de constitucionalidade das leis, ao restringir as decisões individuais. O que, aliás, já está previsto no art. 10 da Lei 9.868/99, que trata da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. A PEC 08, ao reforçar a decisão colegiada do STF, em verdade está aprimorando o seu procedimento. E, por isso, tende a reforçar a legitimidade e a autoridade das decisões do STF que invalidem leis votadas pelo parlamento. O que a PEC diminui, sim, é o exercício do poder individual de cada ministro do STF.
A reação foi indevida por esse motivo teórico. Mas também porque desproporcional à mudança proposta. Há quem ache que o exagero da reação dos ministros do STF foi muito mais por temor à insubmissão de um parlamento que pensavam ter sob controle. Acusam o Legislativo de intromissão em outro poder, mas criticam o chefe do Executivo por não ter interferido no Legislativo para derrotar a PEC 08. E aí o STF erra por pretender exercer algum tipo de controle sobre o outro poder e por pretender que um outro também nele interfira. E erra também por ter reagido sem a autocontenção que a Constituição exige de quem tem a atribuição de funcionar como seu guardião. Viram-se ministros da corte pressionando senadores e fazendo lobby. Depois do resultado, viu-se ministro agredindo os senadores, chamados de “pigmeus morais”, e outros pedindo a destituição do líder do governo no Senado e dizendo que o “diálogo teria acabado”. Viu-se ministro, quase em chantagem, adiando julgamento da PEC dos precatórios, que repercute no objetivo do equilíbrio fiscal. Tudo isso em violação ao princípio do art. 6º da CF, que prevê o equilíbrio e a harmonia entre os poderes. Mas o STF também errou tecnicamente. Ao dizer que a PEC 08 seria inconstitucional, prejulgou um texto que pode vir a ter que julgar em futuro próximo.
Outro erro técnico foi forçar a interpretação das cláusulas pétreas. O art. 60 § 4º da CF veda a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos poderes. Como imaginar que o mero reforço da colegialidade pela PEC 08 é tendente a aboli-la? Fosse assim o poder legislativo jamais poderia ter disciplinado, por exemplo, o procedimento das ações constitucionais, como foi o caso da Lei 9.868/99. Que nunca foi considerada inconstitucional. Querem os ministros do STF impedir que o legislativo cumpra sua função de legislar? Não se desconhecem os méritos do STF na resistência ao autoritarismo, na punição dos golpistas de 8 de janeiro e no enfrentamento do negacionismo na pandemia. Não se desconhece que muitos senadores votaram a PEC 08 movidos por interesses obscuros de vingança contra o STF. Deve-se duvidar das reais intenções do movimento de Rodrigo Pacheco. Mas como negar o mérito da PEC para aperfeiçoar o funcionamento do STF?
* Maurício Rands, advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford.
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