Por Fábio Kerche*
Uma das expectativas desta eleição presidencial – para além da vitória de Lula no primeiro turno – era a de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) fosse atacado por Bolsonaro e por seus apoiadores. O presidente passou seu mandato agredindo o Poder Judiciário e, a medida que as eleições se aproximavam, dobrou a carga sobre a Justiça Eleitoral. O candidato Bolsonaro insistia em ser vago quando confrontado com a pergunta que não faria o menor sentido em uma democracia que se preze: “O senhor reconhecerá a derrota e passará a faixa presidencial para quem ganhar a corrida eleitoral”?
Como se sabe, a definição mais minimalista de democracia é aquela que diz que as eleições devem ser justas e que o derrotado deve reconhecer o resultado. Se fosse possível riscar o chão, essa seria a linha divisória entre países democráticos e países não-democráticos. E é essa característica que permite dizer que países com enormes diferenças de renda, como Dinamarca e Índia, por exemplo, possam fazer parte do mesmo grupo: países com eleições competitivas e, portanto, democráticas.
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A Justiça Eleitoral, ou os órgãos equivalentes em outras democracias, deve funcionar como um juiz de futebol. Quanto menos ele aparecer, quanto menor o número de comentários sobre o seu desempenho, melhor. Quem acompanha futebol sabe que uma das críticas que os comentaristas fazem é quando o árbitro quer “aparecer demais” ou “fala muito”. Quando ninguém lembra do juiz – e nem de sua mãe- é um sinal de que o árbitro conduziu a partida de forma correta e não interferiu no resultado.
As eleições do dia 2 de outubro aconteceram em paz. Com exceção das enormes filas no exterior e em algumas cidades no Brasil, o pleito deve ter entediado os plantonistas nos jornais. Tirando a história de um maluco que atacou uma urna a pauladas ou de um ou outro bolsonarista de camisa da seleção vendo fantasma do comunismo onde nem Marx identificaria, nada pareceu muito digno de nota. O pronunciamento de Alexandre de Moraes, o presidente do STE, foi ignorado pela mídia que preferiu -ainda bem!- acompanhar o pronunciamento do ex-presidente Lula. Observadores internacionais atestaram que o processo de votação é seguro e confiável.
Bolsonaro disse há poucos dias que se não ganhasse a eleição no primeiro turno, esta estaria fraudada. Para justificar sua afirmação, o presidente dizia se basear no “datapovo” que mostrava de forma inequívoca que ele tinha mais apoio do que Lula. Coerente com seu desapreço pela ciência, o ex-capitão acredita que suas impressões são mais precisas que os levantamentos realizados por centros coordenados por estatísticos e cientistas sociais. Se as pesquisas não captaram a migração de votos de última hora, o datapovo também se mostrou óbviamente impreciso: Lula teve um desempenho bastante semelhante ao primeiro turno de sua reeleição em 2006, a melhor marca do PT em disputas presidenciais. Bolsonaro não levou a eleição no primeiro turno, ficou em segundo lugar (fato inédito entre presidentes que concorreram à reeleição durante a Nova República) mas não contestou como ameaçava.
PublicidadeO fato de Bolsonaro não ter atacado o TSE, as urnas e o ministro Alexandre de Moraes não significa, contudo, que o presidente de extrema-direita tenha se tornado um moderado – menos ainda um democrata sincero. Parece mais crível que se trate de um cálculo estratégico: como o resultado eleitoral foi surpreendente, não interessa a Bolsonaro reclamar das urnas. Como reclamar de uma eleição que o levou ao segundo turno e que deu vitória a aliados em vários estados? A verdade é que Jair Bolsonaro, para a decepção dos democratas de todo o mundo, mesmo não sendo o favorito, se mantém vivo na disputa. E enquanto houver disputa, por mais que ele tencione as regras, ele segue jogando.
Não se pode, no entanto, descartar uma reação contra o TSE e o processo eleitoral em caso de derrota no segundo turno por parte do candidato Bolsonaro. A pergunta sobre aceitar o resultado das urnas, infelizmente, ainda precisa estar na lista de qualquer jornalista sério que cubra as eleições. O juiz ainda pode ser manchete.
*Fábio Kerche é doutor em Ciência Política pela USP, professor da Unirio e membro do Observatório das Eleições INCT/IDDC. É coautor do livro “A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil” (ed. Autêntica).
Esse artigo foi elaborado no âmbito do projeto Observatório das Eleições 2022, uma iniciativa do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação. Sediado na UFMG, conta com a participação de grupos de pesquisa de várias universidades brasileiras. Para mais informações, ver: www.observatoriodaseleicoes.com.br.
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