Luis Ventura *, Paloma Gomes ** e Rafael Modesto ***
É notório que os direitos dos povos indígenas são reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como verdadeiras cláusulas pétreas. São direitos expressamente regulados como indisponíveis, como consta no §4º do artigo 231 da Constituição Federal (CF) de 1988. Por isso mesmo, são direitos que não se sujeitam, pela regra, a acordos e negociações.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, no entanto, decidiu fugir da regra e colocar em negociação o direito territorial dos povos indígenas. Nas decisões por ele proferidas como relator das ações de controle de constitucionalidade referentes à Lei 14.701/2023, conhecida como a Lei do Marco Temporal, tudo que envolve os direitos dos povos indígenas é passível de negociação. Até mesmo os direitos indisponíveis estão no escopo das tratativas, ainda que o ministro tenha ciência de que os direitos fundamentais não se sujeitam à conciliação.
Tanto o ministro Gilmar Mendes, como o ministro Edson Fachin – este relator do RE 1.017.365 (Tema 1.031), onde a Corte por nove votos a dois declarou inconstitucional a tese do marco temporal –, já decidiram que não se pode negociar direitos indisponíveis. Por isso mesmo, fica incompreensível o fato de que agora, nas tratativas que se avizinham no STF com o início na próxima segunda (5) das audiências de conciliação por ele propostas, o decano não tenha delimitado o objeto das negociações.
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Em uma decisão datada em 14 de dezembro de 2021, em um processo que se discutia a validade da demarcação da Terra Indígena Apyterewa, do povo Parakanã, no estado do Pará, Gilmar Mendes reforçou a inviabilidade constitucional de acordos que envolvem os direitos indisponíveis dos povos indígenas. Segundo o ministro, “é necessário reconhecer que o acordo não será sempre viável, seja em virtude de vedações legais, seja por obstáculos fáticos. Basta observar que, em regra, direitos indisponíveis não podem ser alcançados por solução consensual que implique renúncia ou limitação ao seu exercício”.
O ministro vai além no caso do povo Parakanã ao afirmar que a terra indígena não pode estar à disposição dos interesses de terceiros e que a “demarcação observa critérios legais e constitucionais, ancorados em laudos antropológicos, razão pela qual não pode ser desconstituída”.
PublicidadeEm outra decisão, dada no âmbito da ACO 1.100, que trata da demarcação da Terra Indígena (TI) Ibirama Laklaño, do povo Xokleng, no Alto Vale do Itajaí (SC), o ministro Edson Fachin firmou o seguinte: “[e]m análise do feito, depreendo que, a despeito de existirem temáticas de direito indisponível, mostra-se plausível apontar que, em alguma medida, questões de natureza disponível e, portanto, passíveis de serem conciliadas ao menos em parte, exsurgem da presente demanda”.
O ministro Fachin admite a possibilidade de conciliação em relação aos direitos indígenas, mas não sobre aqueles que são indisponíveis. São conciliáveis tratativas sobre reassentamentos, indenizações, gestão compartilhada de parques e unidades de conservação, mas nunca sobre limites de territórios, sistemas culturais e conceitos extraídos do artigo 231 da Constituição.
Ainda no âmbito do julgamento do STF que afastou a tese do marco temporal, o ministro Edson Fachin decidiu no mesmo sentido, ressaltando “que o artigo 231, §4º da Constituição da República consigna os direitos fundamentais territoriais indígenas como direitos indisponíveis”. Nesse mesmo processo, a Suprema Corte, no acórdão publicado em 15 de fevereiro de 2024, definiu que esse direito fundamental, indisponível por natureza constitucional, se constitui em cláusulas pétreas, e que não está sujeito a maiorias legislativas eventuais.
Nessa decisão, a Suprema Corte sustentou que em relação a “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, o artigo 231 tutela aos povos indígenas direitos fundamentais, com as consequentes garantias inerentes à sua proteção, quais sejam, consistir em cláusulas pétreas”. Neste caso, o ministro Gilmar Mendes participou efetivamente dos debates, proferiu voto e se alinhou ao entendimento de que o marco temporal é inconstitucional por afronta direta ao artigo 231 da Constituição.
Fica, ao final, a pergunta: qual o motivo do ministro relator das ações de controle de constitucionalidade se entregar a tamanha contradição, não seguir o entendimento já sedimentado no âmbito do Suprema Tribunal Federal, da qual é signatário, e permitir a negociação sobre direitos indisponíveis dos povos originários?
Os povos indígenas e aliados ainda buscam repostas a esse questionamento. Esperamos que o relator ainda possa definir o objeto das tratativas para constar apenas direitos disponíveis e patrimoniais como passíveis de acordo. Também esperamos que siga a definição do STF no que tange a já declarada incostitucionalidade da tese do marco temporal e que possa suspender imediatamente os efeitos da Lei 14.701/2023 e com isso frear o alto nível de violência contra comunidades já há muito fragilizadas.
* Luis Ventura é secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
** Paloma Gomes – assessora jurídica do Cimi.
*** Rafael Modesto – assessor jurídico do Cimi.
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