Magistrados, integrantes do Ministério Público e policiais convertidos em heróis nacionais. Livros publicados em louvor aos salvadores de uma pátria devastada por organizações criminosas. Autógrafos concedidos em filas. Políticos destruídos, aprisionados, desmoralizados e derrotados em pleitos eleitorais. Moralistas, conservadores, corruptos e fascistas disfarçados em “pessoas de bem” eleitos em substituição à leva de representantes apontados como criminosos pelos baluartes da moralidade pública. Empresas destruídas, empregos extintos e patrimônios transferidos para os grupos prediletos dos acusadores e julgadores. A mídia – convertida em Tribunal da Verdade – condenando sem direito à defesa ou com a apresentação de provas que ultrapassassem a fase da “livre convicção jornalística”. Por fim, o registro de candidaturas eleitorais dos “salvadores da pátria necessitada de restauros morais”.
E, no apagar dos holofotes, a revelação de crimes e conluios praticados pelos aclamados heróis da pátria. Descobre-se que decisões judiciais resultaram na apropriação de recursos das empresas por eles próprios destruídas. Revela-se que a criação de um órgão destinado ao combate à corrupção tinha como finalidade o enriquecimento ilícito de seu administrador, não coincidentemente um dos impolutos combatentes dos pecadores expostos às pedradas da multidão enraivecida. No mesmo compasso revelador, a constatação do recebimento de verbas públicas disfarçadas em gratificações, auxílios e outros penduricalhos que ampliavam a já ampliada remuneração dos honrados combatentes.
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Devo registrar – para evitar confusões desnecessária ou conclusões apressadas – que este artigo não está a analisar o comportamento do magistrado brasileiro que comandou a aclamada, prestigiada e até então impoluta Operação Lava Jato. Tampouco o fato de que ele serviu como “ministro-executivo com a promessa de ser convertido em ministro-supremo” pelo candidato que as suas decisões ajudou a eleger. Tampouco está a se referir aos lucros obtidos através de contratos privados para supostamente ajudar na recuperação econômica de empresas que suas decisões levaram à bancarrota. Não está a registrar, ainda, a tentativa de criação de uma instituição bilionária, a ser administrada pelo procurador da República, com os recursos oriundos da Petrobras, obtidos através de um absurdo e suspeito acordo judicial que beneficiou investidores estrangeiros, munidos de informações privilegiadas enviadas pelos acusadores brasileiros. Da mesma forma, não está a se analisar as gratificações e os auxílios exorbitantes pagos com recursos públicos. E, finalmente, apontar o interesse ideológico ou partidário dos “heróis convertidos em candidatos eleitorais” a cargos que sempre condenaram.
Não! Os fatos narrados na parte introdutória deste artigo têm como referência a série documental italiana “Vendetta: Guerra nell’antimafia”, integrante da plataforma Netflix. Lançada em setembro de 2021, ela narra a atuação do jornalista Pino Maniaci, da juíza Silvana Saguto e do advogado de defesa e ex-procurador Antonio Ingroia, três dos personagens marcantes, aplaudidos, historiados e transformados em heróis durante a italiana Operação Mãos Limpas, apontada como inspiradora-confessa da brasileira Operação Lava Jato. O documentário mostra o sistema de corrupção, a apropriação de bens das empresas atingidas pelas decisões judiciais, o tráfico de influência e o esquema de pagamento de verbas públicas disfarçadas em remuneração. O jornalista acusa a juíza de vários crimes cometidos durante e após o desfecho da Operação Mãos Limpas, e é acusado pela juíza de extorquir e chantagear os acusados pela mesma operação. O advogado do jornalista – antigo procurador e posterior candidato em várias eleições – aparece como investigado em desfalque, recebimento indevido de verbas públicas, peculato e por ter recolhido os reembolsos aos quais não tinha direito.
Como defensor do devido processo legal, advogado da tese do trânsito em julgado como parâmetro de reconhecimento da inocência e cinéfilo assumido, não contarei se o jornalista Pino Maniaci, a juíza Silvana Saguto e Antonio Ingroia foram condenados ou absolvidos em razão dos graves crimes em que foram acusados, tampouco dos resultados eleitorais obtidos pelo personagem-candidato. Os vários episódios da série ou uma rápida pesquisa na internet serão meios eficazes para obtenção de respostas. Mas posso antecipar que o documentário italiano detalhou parte do submundo da ruidosa Operação Mãos Limpas, que se pretendia exemplo de combate ao crime organizado.
A série “Vendetta: Guerra nell’antimafia” pretendeu advertir ao mundo de que “mãos não-limpas” poderiam agir a jato quando camufladas em discursos moralistas, puritanos, sensacionalistas e ideológicos dos aplaudidos “salvadores do mundo”. Devemos aprender a lição, criando mecanismos que tornem mais transparentes as ruidosas e polêmicas operações judiciais que reproduzem a perversa lógica de que para combater o crime tudo é possível, até mesmo praticar crimes. Abrir os seus bastidores, adotar medidas impeditivas de seu desvirtuamento, evitar os holofotes midiáticos que condenam antes mesmo das decisões judiciais, evitar o nascimento de heróis que desrespeitam as regras processuais, punir quem abusou e não partidarizar os acusadores/julgadores são alguns dos exemplos urgentes.
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