Um dos assuntos mais polêmicos da atualidade é a Lei de Cotas, que garante benefício a grupos ou minorias, como algumas etnias, no acesso a universidades e agora também em concursos públicos. Recente decisão judicial veio colocar mais lenha na fogueira e precisa ser bem esclarecida, principalmente para conhecimento de quem se prepara para prestar concurso.
Vamos aos fatos. O artigo 96 da Constituição Federal garante aos tribunais de Justiça autonomia orgânico-administrativa para estruturar os serviços notariais e registrais deles. Com isso, a definição legal dos requisitos para acesso a esses cargos, se não decorrer da própria Carta Magna, constitui prerrogativa exclusiva do Judiciário, sob pena de usurpação da reserva de iniciativa deste Poder.
Com base nesse entendimento, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul julgou inconstitucional parte da Lei estadual 14.147/2012 em que se estendia a ‘‘quaisquer dos Poderes do Estado’’ a reserva de vagas a negros e pardos em concursos públicos estaduais. A ação em que a lei foi declarada inconstitucional havia sido ajuizada com o propósito de derrubar edital de concurso pelo fato de o documento não prever expressamente a destinação de vagas exclusivamente para aquelas pessoas.
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O relator do incidente de constitucionalidade, desembargador Eduardo Uhlein, já havia se manifestado pelo vício de inconstitucionalidade formal da lei quando relatara o mandado de segurança no 2º Grupo Cível, em outubro de 2013. O grupo reúne os magistrados que integram a 3ª e a 4ª Câmara Cível, que uniformiza a jurisprudência em demandas do funcionalismo público. Para o relator, a concretização dos objetivos fundamentais da República, nos termos da lei, é tarefa que não pode prescindir da devida iniciativa de cada legitimado constitucional. Afinal, a reserva de iniciativa privativa é atributo substancial do princípio da separação e independência entre os Poderes, conforme preceitua o artigo 2º da Constituição.
O desembargador Carlos Cini Marchionatti, um dos poucos que divergiram de Uhlein, afirmou que a questão da reserva de vagas com base em critério étnico-racial foi declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em abril de 2012, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski. “Declarar inconstitucional a Lei 14.147/2012 significa atribuir uma perspectiva essencialmente formal ao princípio da igualdade, um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro. De outro lado, o objetivo da aludida lei pretende justamente erradicar esse viés formalista do princípio da igualdade, regularizando expressamente um meio de sua superação, mediante a atuação consistente do Estado na realocação de oportunidades a toda a coletividade”, justificou Marchionatti. O acórdão foi lavrado na sessão de 27 de janeiro.
O mandado de segurança julgado pelo TJ-RS atacava ato do presidente da Comissão do Concurso de Ingresso nos Serviços Notarial e Registral do Estado do Rio Grande do Sul. Na ação, questionava-se o fato de o edital de lançamento do certame não contemplar a reserva de vagas para negros e pardos conforme determina a Lei estadual 14.147/2012. O dispositivo, no caput do artigo primeiro, diz o seguinte: “Fica assegurada aos negros e aos pardos, nos concursos públicos para provimento de cargos da Administração Pública Direta e Indireta de quaisquer dos Poderes e Órgãos do Estado do Rio Grande do Sul, a reserva de vagas em percentual equivalente à sua representação na composição populacional do Estado, apurada pelo censo realizado pelo IBGE”.
PublicidadeEmbora a prova objetiva do concurso tivesse sido aplicada em julho de 2013, o autor da ação sustentou que as inscrições deveriam ser reabertas, para propiciar aos interessados — negros e pardos — a inscrição no certame. Afinal, concluiu, a reserva de vagas destina-se a todos os concursos estaduais, para provimentos de cargos de qualquer espécie.
Questionada, a Comissão do Concurso informou não ser possível a aplicação da Lei de Cotas ao certame, por ausência de decreto regulador e de previsão legislativa para preservar vagas em concurso de delegação pública.
No acórdão, o relator do mandado no 2º Grupo Cível, desembargador Eduardo Uhlein, afirmou que a primeira questão a ser respondida era se o Poder Legislativo gaúcho poderia tomar a iniciativa de estabelecer reserva de vagas em cargos atinentes a outros poderes de Estado e, no particular, no TJ-RS, a quem compete realizar os concursos para o provimento dos serviços notariais e registrais.
A Constituição Federal, explicou, assegura aos tribunais a garantia da autonomia orgânico-administrativa, “que compreende sua independência na estruturação e funcionamento de seus órgãos”. Essa garantia, estabelecida no artigo 96, consiste em organizar seus serviços auxiliares e prover, por concurso público de provas, ou de provas e títulos, obedecido o disposto no artigo 169, parágrafo 1º, os cargos necessários à administração da Justiça.
Ainda segundo o magistrado, a Constituição estadual, no artigo 95, inciso IV, assegura a competência do Tribunal de Justiça para prover, por concurso público, os cargos necessários à administração da Justiça comum, inclusive os de serventias judiciais. Nestes estão inclusos os cargos do foro extrajudicial, registral e notarial, nos termos do artigo 1º da Lei estadual 7.356/1980, conhecida como Código de Organização Judiciária.
Uhlein concluiu que, do exame das duas Cartas, constata-se que nenhuma delas contêm disposição sobre reserva de vagas a afrodescendentes, diferentemente do que se dá em relação aos deficientes. De fato, o comando do artigo 37, inciso VIII, da Constituição Federal prevê, apenas, que lei ordinária reservará percentual de cargos às pessoas deficientes que pretendem ingressar no serviço público. “Forçoso, então, reconhecer que somente a cada poder de Estado — e ao Poder Judiciário em particular — compete a decisão a respeito da oportunidade e da conveniência para deflagrar processo legislativo de sua iniciativa privativa e que venha a dispor, validamente, sobre a hipótese de estabelecer reserva de vagas”, destacou o magistrado.
Nessa linha, o desembargador-relator se convenceu de que parte da Lei de Cotas contém “insuperável vício de inconstitucionalidade formal”, por usurpação da reserva de iniciativa exclusiva do Poder Judiciário. O trecho específico declarado inconstitucional está no caput do artigo primeiro, que generaliza: “(…) de quaisquer dos Poderes do Estado”. O relator transferiu para o Órgão Especial da Corte a responsabilidade de julgar a inconstitucionalidade desse trecho da lei, como autorizam o artigo 209 do Regimento Interno do Tribunal e o artigo 97 da Constituição Federal. Este assegura que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato se dará somente pelo voto da maioria absoluta dos membros do Órgão Especial.
São esses os fatos. Nesse contexto, caro concurseiro, esteja atento para a possibilidade de a Lei de Cotas vir a ser um dos assuntos cobrados em prova nos próximos concursos. Vale a pena esmiuçar o tema, conferindo a Lei estadual gaúcha 14.147/2012, bem como o acórdão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o do 2º Grupo Cível. E boa sorte e bons estudos! Que você logo possa comemorar o seu feliz cargo novo!
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