Igor Roque *
Os desdobramentos do escândalo dos vazamentos envolvendo o ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sergio Moro, e membros do MPF como o procurador da República Deltan Dallagnol, em que o magistrado supostamente orienta a acusação, expõe uma cultura que se tornou comum no Judiciário Brasileiro e que precisa ser erradicada. Fatos como esse ocorrem diariamente no Brasil, conforme reconhecido por 270 integrantes da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), e não podem ser vistos como algo “natural ou corriqueiro”, pois corresponde a verdadeira violação de regras básicas do processo penal. A relação que se revela neste caso, entre quem julga e quem acusa, não pode ser normalizada. A Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef) se posiciona publicamente em defesa daqueles que buscam uma Justiça isenta e democrática e enxerga no episódio uma oportunidade para profunda reflexão sobre o processo penal no Brasil.
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O processo penal surgiu como um sistema inquisitivo, onde quem acusava também julgava. Os princípios da Constituição de 1988 estabeleceram, porém, o sistema acusatório, que divide as figuras do processo, para que quem acusa, defende e quem julga sejam entidades separadas. Essa mudança tem como objetivo garantir o direito à defesa e evitar processos com cartas marcadas. No entanto, ainda permanece no Judiciário uma mentalidade inquisitiva, que se manifesta na proximidade das figuras do magistrado e da acusação.
Um exemplo simbólico também está posto na disposição dos participantes do processo durante o julgamento: acusação e magistrado ficam lado a lado. Isso influencia até mesmo na opinião do júri. Um jurado leigo, para quem o juiz é autoridade suprema, por associação tende a atribuir maior credibilidade ao promotor, sentado ao lado do magistrado, do que à defesa. Esse tratamento privilegiado da acusação reflete diretamente nas decisões, violando o direito à ampla defesa e a imparcialidade do Judiciário.
Não adianta existir na letra da lei a garantia da imparcialidade e as figuras da acusação, da defesa e do magistrado, se esses mantiverem uma relação de proximidade, agindo como se fossem uma única entidade com interesses e objetivos comuns. Nesse cenário, defensores públicos e advogados de defesa se tornam apenas figurantes em um teatro para legitimar a acusação. O processo se transforma em um verdadeiro faz de conta.
Se o problema é cultural, a transformação também precisa começar pela cultura. Mudar a disposição das partes no tribunal, por exemplo, é um ato simbólico que terá um impacto concreto na forma como o papel da defesa é enxergado no país. Defesa e acusação precisam estar lado a lado, em pé de igualdade. Ao transformar a forma como enxergamos a defesa e a acusação no Brasil, podemos garantir um futuro em que o processo penal corresponda à imagem da balança, símbolo que aspiramos para a Justiça: peso e contrapeso equilibrados, evocando a imparcialidade do Judiciário e o direito a um julgamento justo.
Publicidade* É presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (Anadef).
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