O julgamento em curso no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) é histórico, pois trata-se da primeira vez que um candidato derrotado em uma eleição presidencial pode ser declarado inelegível. Jair Bolsonaro está se defendendo de graves acusações segundo as quais ele se valeu da condição de presidente para, aproveitando uma reunião com embaixadores de diversos países, lançar afirmações falsas contra o sistema eleitoral brasileiro, com o objetivo de mobilizar seus apoiadores e descredibilizar as instituições democráticas do país, tudo custeado e divulgado por meio de recursos públicos. Aqui eu explico por que esse julgamento é possível de acordo com nossas leis.
A promulgação da Lei da Ficha Limpa representou um marco significativo no contexto político do Brasil. Essa legislação trouxe mudanças essenciais, principalmente no que se refere à responsabilização legal de candidatos derrotados. Anteriormente, tal medida não era viável no âmbito da Justiça Eleitoral. No entanto, com a entrada em vigor de uma das normas presentes na Lei da Ficha Limpa, redigida pessoalmente por mim e aprovada sem modificações pelo Congresso Nacional, passou a ter efeito. De acordo com o que ficou estabelecido, a avaliação de um ato abusivo deve levar em consideração unicamente a gravidade das circunstâncias que o caracterizam, sem que se possa ponderar sua possível influência sobre o resultado das eleições.
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É fundamental destacar que essa “regra de ouro” foi fundamental para ampliar a inelegibilidade por abuso de poder, abrangendo também candidatos que não obtiveram sucesso nas eleições. Como juiz eleitoral, deparei-me com casos concretos nos quais foram apresentadas evidências substanciais de sérias transgressões eleitorais cometidas por candidatos ao longo das campanhas. Entretanto, quando esses postulantes eram derrotados, as investigações judiciais eleitorais envolvendo esses indivíduos eram prontamente arquivadas, uma vez que a derrota eleitoral resultava na perda do objeto dessas medidas judiciais.
A origem dessa mudança remonta a um diálogo informal que mantive em 2002 com o então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Nelson Jobim. Durante um debate ocorrido em Brasília, compartilhamos nossas inquietações em relação à legislação eleitoral e Jobim expressou sua crítica à não discussão judicial das condutas ilícitas praticadas pelos candidatos derrotados. De forma bem-humorada, ele fez uma alusão ao livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ao mencionar: “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”. Seria necessário, portanto, promover uma distribuição mais equitativa dessas “batatas”, permitindo que os derrotados também respondessem por suas ações.
Oito anos após esse episódio, em 2010, foi promulgada a Lei da Ficha Limpa, resultado da maior mobilização popular já ocorrida em torno de um projeto de iniciativa popular. Essa legislação representou um avanço significativo para a transparência e justiça nas eleições, garantindo que candidatos derrotados não fiquem isentos das consequências de suas condutas ilícitas.
Em resumo, a Lei da Ficha Limpa desempenhou um papel fundamental na transformação do cenário político brasileiro. A inclusão da norma que permite o julgamento de candidatos derrotados por abuso de poder evidencia um progresso necessário na busca pelo aprimoramento das nossas eleições.
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