Luiz Alberto dos Santos *
A edição de medidas provisórias, na vigência da Constituição de 1988, e mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional nº 32, de 2001, tem sido objeto de frequentes questionamentos, em virtude do destaque que tem assumido na produção legislativa pátria e de suas características como instrumento excepcional capaz de introduzir, com força de lei, desde a data de sua publicação, inovações no ordenamento legal.
Se a própria edição das medidas provisórias já suscita questionamentos, seja pela eventual inobservância do cumprimento dos requisitos de urgência e relevância requeridos pelo art. 62 “caput” da CF, seja pela invasão de campos temáticos expressa ou implicitamente vedados ao seu uso (§ 1º do art. 62 da CF e art. 246 da CF), ou mesmo pela inobservância de requisitos de validade previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (e.g. art. 16, 17 e 21), e, até mesmo, de inobservância das regras fixadas pela Lei Complementar nº 95, de 1998, que dispõe sobre a elaboração, redação e alteração das Leis, mais ainda se justifica a crítica ao seu processo de emendamento, quando não observa os requisitos do devido processo legislativo.
Com a EC nº 32, de 2001, extinguiu-se o instituto da reedição de medidas provisórias, até então rotineiro. Vigentes por até cento e vinte dias, sem possibilidade de prorrogação, as medidas provisórias não podem ser novamente editadas na mesma sessão legislativa. A partir de então, diversas medidas provisórias perderam a eficácia, sem a produção de efeitos futuros, embora, via de regra, preservados os efeitos dos atos praticados durante a sua vigência. O quadro a seguir demonstra, no período 2011-2015, a ocorrência de medidas provisórias que perderam a eficácia sem que tenham sido aprovadas pelo Congresso Nacional (não estão incluídas as MPVs revogadas pelo próprio Poder Executivo):
Leia também
Ano | Editadas | Perda de eficácia |
2011 | 36 | 6 |
2012 | 45 | 3 |
2013 | 32 | 10 |
2014 | 29 | 14 |
2015* | 31 | 1 |
– * incluídas medidas provisórias editadas até 15.10.2015.
A obrigatoriedade de que as medidas provisórias sejam convertidas em lei para continuarem a produzir efeitos após 120 dias foi impactada fortemente pela decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.029, em março de 2012, a partir da qual conferiu-se efetividade ao disposto no § 9º do art. 62 da CF.
PublicidadeDa extensa ementa do referido julgado destaca-se:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI FEDERAL Nº 11.516/07. CRIAÇÃO DO INSTITUTO CHICO MENDES DE CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE. LEGITIMIDADE DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS SERVIDORES DO IBAMA. ENTIDADE DE CLASSE DE ÂMBITO NACIONAL. VIOLAÇÃO DO ART. 62, CAPUT E § 9º, DA CONSTITUIÇÃO. NÃO EMISSÃO DE PARECER PELA COMISSÃO MISTA PARLAMENTAR. INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 5º, CAPUT, E 6º, CAPUT E PARÁGRAFOS 1º E 2º, DA RESOLUÇÃO Nº 1 DE 2002 DO CONGRESSO NACIONAL. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS DA NULIDADE (ART. 27 DA LEI 9.868/99). AÇÃO DIRETA PARCIALMENTE PROCEDENTE.
(…)
4. As Comissões Mistas e a magnitude das funções das mesmas no processo de conversão de Medidas Provisórias decorrem da necessidade, imposta pela Constituição, de assegurar uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada, percebendo-se, assim, que o parecer desse colegiado representa, em vez de formalidade desimportante, uma garantia de que o Legislativo fiscalize o exercício atípico da função legiferante pelo Executivo.
5. O art. 6º da Resolução nº 1 de 2002 do Congresso Nacional, que permite a emissão do parecer por meio de Relator nomeado pela Comissão Mista, diretamente ao Plenário da Câmara dos Deputados, é inconstitucional. A Doutrina do tema é assente no sentido de que “’O parecer prévio da Comissão assume condição de instrumento indispensável para regularizar o processo legislativo porque proporciona a discussão da matéria, uniformidade de votação e celeridade na apreciação das medidas provisórias’. Por essa importância, defende-se que qualquer ato para afastar ou frustrar os trabalhos da Comissão (ou mesmo para substituí-los pelo pronunciamento de apenas um parlamentar) padece de inconstitucionalidade. Nessa esteira, são questionáveis dispositivos da Resolução 01/2002-CN, na medida em que permitem a votação da medida provisória sem o parecer da Comissão Mista. (…) A possibilidade de atuação apenas do Relator gerou acomodação no Parlamento e ineficácia da Comissão Mista; tornou-se praxe a manifestação singular: ‘No modelo atual, em que há várias Comissões Mistas (uma para cada medida provisória editada), a apreciação ocorre, na prática, diretamente nos Plenários das Casas do Congresso Nacional. Há mais: com o esvaziamento da Comissão Mista, instaura-se um verdadeiro ‘império’ do relator, que detém amplo domínio sobre o texto a ser votado em Plenário’. Cumpre lembrar que a apreciação pela Comissão é exigência constitucional. Nesses termos, sustenta-se serem inconstitucionais as medidas provisórias convertidas em lei que não foram examinadas pela Comissão Mista, sendo que o pronunciamento do relator não tem o condão de suprir o parecer exigido pelo constituinte. (…) Cabe ao Judiciário afirmar o devido processo legislativo, declarando a inconstitucionalidade dos atos normativos que desrespeitem os trâmites de aprovação previstos na Carta. Ao agir desse modo, não se entende haver intervenção no Poder Legislativo, pois o Judiciário justamente contribuirá para a saúde democrática da comunidade e para a consolidação de um Estado Democrático de Direito em que as normas são frutos de verdadeira discussão, e não produto de troca entre partidos e poderes.” (In : CLÈVE, Clèmerson Merlin. Medidas Provisórias. 3ª ed. São Paulo: RT, 2010. p. 178-180. V. tb. CASSEB, Paulo Adib. Processo Legislativo – atuação das comissões permanentes e temporárias. São Paulo: RT, 2008. p. 285)
6. A atuação do Judiciário no controle da existência dos requisitos constitucionais de edição de Medidas Provisórias em hipóteses excepcionais, ao contrário de denotar ingerência contramajoritária nos mecanismos políticos de diálogo dos outros Poderes, serve à manutenção da Democracia e do equilíbrio entre os três baluartes da República. Precedentes (ADI 1910 MC, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 22/04/2004; ADI 1647, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, Tribunal Pleno, julgado em 02/12/1998; ADI 2736/DF, rel. Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 8/9/2010; ADI 1753 MC, Relator Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/1998).
(…)
11. Ação Direta julgada improcedente, declarando-se incidentalmente a inconstitucionalidade dos artigos 5º, caput, e 6º, caput e parágrafos 1º e 2º, da Resolução nº 1 de 2002 do Congresso Nacional, postergados os efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99, para preservar a validade e a eficácia de todas as Medidas Provisórias convertidas em Lei até a presente data, bem como daquelas atualmente em trâmite no Legislativo.”
Esse importante precedente – do qual decorre a atual sistemática de obrigatória apreciação e aprovação prévia de parecer pela comissão mista como requisito para apreciação pelo Plenário da Câmara dos Deputados e, se aprovada por este, pelo Plenário do Senado Federal da Medida Provisória ou Projeto de Lei de Conversão -, firma o princípio da sindicabilidade judicial do devido processo legislativo, de observância obrigatória para que a lei congressualmente aprovada seja válida do ponto de vista de sua constitucionalidade.
Não obstante, tal deliberação teve como resultado o aguçamento do oportunismo no processo legislativo, visto que, dada a obrigatoriedade de sua apreciação em plenário, as medidas provisórias passaram a converter-se em “locomotivas” às quais se atrelavam, no curso da tramitação, vagões carregando os mais diferentes conteúdos.
Historicamente, o próprio Poder Executivo, por razões de conveniência, foi refratário à aplicação da Lei Complementar nº 95, de 1998, segundo a qual “cada lei tratará de um único objeto” (art. 7º I), que “a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão” (art. 7º II), e que “o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva” (art. 7º III), havendo inúmeros casos de medidas provisórias editadas sem a observância desses requisitos. Temas que, em tese, deveriam ser veiculados separadamente, eram fundidos numa mesma medida provisória, reduzindo, assim, a “estatística” de medidas provisórias e aumentando o grau de controle do Executivo sobre a sua tramitação, visto que um mesmo relator seria responsável por todo o conteúdo em exame.
Essa problemática tornou-se ainda mais grave em face da atuação dos Relatores das medidas provisórias, que continuaram a exercer, monocraticamente, a prerrogativa de “autores”, ao incorporar matéria nova e estranha, de sua iniciativa, ou acatando emendas apresentadas pelos parlamentares, sem que fosse aplicado, pelos presidentes das comissões mistas, o disposto no art. 4º, § 4º da Resolução nº 1/2002-CN:
“Art. 4º Nos 6 (seis) primeiros dias que se seguirem à publicação da Medida Provisória no Diário Oficial da União, poderão a ela ser oferecidas emendas, que deverão ser protocolizadas na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal.
….
§ 4º É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar.
§ 5º O autor da emenda não aceita poderá recorrer, com o apoio de 3 (três) membros da Comissão, da decisão da Presidência para o Plenário desta, que decidirá, definitivamente, por maioria simples, sem discussão ou encaminhamento de votação.
………………….”
O uso não apenas excessivo, como irrazoável, da prerrogativa do Relator, assim como da iniciativa de emenda parlamentar, sem que, via de regra, se aplicasse o juízo de pertinência temática, atende ora ao interesse do próprio Executivo, ora ao interesse parlamentar, contornando o processo legislativo ordinário e permitindo que, sem grandes debates e questionamentos, em face do regime de urgência que é a marca do exame das medidas provisórias, matérias das mais variadas origens e interesses sejam apreciadas em caráter definitivo e, eventualmente, se sancionadas, se convertam em lei.
O protagonismo do Legislativo, assim, passou a ser exercitado por meio de “caronas” em medidas provisórias, que passaram a ser a forma privilegiada para veicular benefícios fiscais, flexibilizações de obrigações e outras matérias de interesse de setores do Congresso ou mesmo da sociedade que, pelo rito legislativo normal, jamais chegariam a ser apreciadas com a mesma celeridade.
Tal situação levou, em um primeiro momento, a uma solução que, curiosamente, se deu por meio de decisões em questões de ordem, proclamadas a partir de 2009 pelo então presidente da Câmara, Deputado Michel Temer, e posteriormente, na gestão de Henrique Alves.
Essas decisões consolidaram o entendimento de que, à luz do já citado inciso II do art. 7º da Lei Complementar nº 95/1998 e dos arts. 55, parágrafo único, e 125 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, o presidente poderia, antes do início da votação da matéria pelo Plenário, declarar “não escrita” parte do Projeto de Lei de Conversão que contivesse “matéria estranha” ao objeto da medida provisória.
Essa interpretação alcançaria, num primeiro momento, tudo o que não estivesse diretamente relacionado ao seu “núcleo material” ou “núcleo principal”. Ao apreciar as Questões de Ordem nº 478 e 480/2009, o Presidente da Câmara dos Deputados reformulou entendimento anterior que atribuía diretamente ao Plenário o julgamento de admissibilidade das emendas a medidas provisórias mesmo quando contrariam a norma e tratam de matéria estranha ao escopo da medida provisória, determinando, a partir daí, que seriam inadmitidas emendas estranhas ao núcleo material das medidas provisórias, aí incluída eventual inserção de matéria estranha pelo Relator, assegurado o recurso de autor da emenda ao Plenário. A decisão, contudo, não afetaria a própria medida provisória editada, que poderia, a juízo do Executivo, veicular matérias distintas, ampliando-se, assim, o que poderia ser considerado “núcleo material”, para aquele fim. Tampouco afetaria o reexame, pela Câmara dos Deputados, de emendas aprovadas pelo Plenário do Senado Federal, mesmo que as mesmas tenham sido tidas como inadmitidas ou não escritas na Câmara dos Deputados (Questão de Ordem nº 501/2009). Para a validação da emenda, haveria a necessidade, ainda, de um “nexo causal” ou conexão temática, ou relação de complementaridade.
No entanto, em 2010, ao apreciar a Questão de Ordem 697/2010, esse entendimento foi flexibilizado pelo mesmo Presidente da Câmara, passando a ser admitida a prerrogativa do Relator de apresentar emendas, ainda que contendo “matéria estranha”, cabendo ao Plenário – e não à Presidência – deliberar sobre esse conteúdo.
Com a decisão do Presidente Henrique Alves na Questão de Ordem nº 352, de 2013, referendada pelo Colégio de Líderes da Câmara dos Deputados em 10 de setembro de 2013, a partir da Medida Provisória nº 621, de 2013, passaram a ser submetidas a procedimentos mais rigorosos.
Segundo a decisão, a tramitação dessa Medida Provisória “expôs, de forma flagrante, um desvirtuamento do processo legislativo que vem se agravando nos últimos anos”, e que merecia uma reação adequada da Câmara dos Deputados. Tratava-se de “desobediência clara e reiterada” ao disposto na Lei Complementar nº 95, de 1998. Igualmente, destacava, o Regimento Interno da Câmara dos Deputados determina, no §3°, do art. 100, que “nenhuma proposição poderá conter matéria estranha ao enunciado objetivamente declarado na ementa, ou dele decorrente.” Assim, decidia que, doravante, seria devolvida à Comissão Mista a medida provisória, as emendas ou projeto de lei de conversão que contrariassem esses mandamentos legais, para as devidas adequações. Igualmente, passou a adotar como regra a não aceitação, pela Presidência da Câmara, de medida provisória encaminhada para apreciação pelo Plenário faltando menos de quinze dias úteis para sua perda de eficácia, a fim de assegurar à Câmara dos Deputados o mínimo de uma semana para sua apreciação.
Note-se que, nessa decisão, mais rigorosa, o conceito de “matéria estranha” era delineado a partir do enunciado declarado na ementa da medida provisória, ou dele decorrente. Haveria, assim, uma maior facilidade para a identificação da sua aplicação, embora permanecessem, num certo sentido, bastante amplas as possibilidades de emenda em medidas provisórias que, por exemplo, dispusessem largamente sobre “legislação tributária”, como era o caso, por exemplo, da Medida Provisória nº 634, editada no mesmo ano (2013), e cuja ementa assim resumia seu objeto: “Prorroga o prazo para a destinação de recursos aos Fundos Fiscais de Investimentos, altera a legislação tributária federal, e dá outras providências”. Além disso, em decisão posterior (Questão de Ordem nº 393/2014), o Presidente declarou: “… quando há a mínima referência à medida provisória, por coerência, a gente mantém. Apenas quando a matéria é totalmente estranha é que nós retiramos.”
Já na apreciação da Medida Provisória nº 627, em 1º de abril de 2014, a decisão produziu efeitos, sendo declarados não escritos dois artigos do texto oriundo da Comissão Mista. Na Medida Provisória nº 628, apreciada em 2 de abril de 2014, foram declarados não escritos 8 artigos do projeto de lei de conversão aprovado pela comissão mista.
E mesmo nesse contexto, a prática usual de que, mediante recurso ao plenário, apreciado em votação simbólica, fossem superadas as decisões do Presidente determinando a supressão de dispositivos e emendas, continuou a permitir que os chamados “jabutis” continuassem a permear os textos submetidos a apreciação do Plenário, sem contar os casos em que o próprio Senado Federal, como casa revisora, reintroduzia esses dispositivos, obrigando a Câmara a novo reexame, e, com regularidade, levando à sua aprovação no texto final.
Algumas medidas provisórias se mostraram exemplares nessa prática, como a Medida Provisória nº 651, de 2014, editada com 51 artigos e sancionada, na forma da Lei nº 13.043/2014 com 113 artigos; e a Medida Provisória nº 656, de 2014, editada com 56 artigos, e sancionada com 169 artigos (Lei nº13.097, de 2015).
Finalmente, no ano de 2015, novos episódios lançaram um debate renovado sobre o tema, já sob a presidência do Deputado Eduardo Cunha.
Durante a tramitação da MP nº 668, editada com somente 4 artigos, a Comissão Mista aprovou parecer contemplado nada menos que 34 novos artigos – parte deles, inclusive, incluídos a pedido do Poder Executivo. Uma grande celeuma se instaurou sobre o conteúdo desses acréscimos, grande parte deles promovendo ajustes em leis totalmente estranhas ao “núcleo material” da medida provisória que tratava, somente, de ajustes de Contribuição para o PIS/PASEP Importação e da COFINS-Importação. Após amplas negociações, antes da submissão do projeto de lei de conversão ao Plenário, em 19 de maio de 2015, restaram declarados “não escritos” pelo Presidente da Câmara 14 artigos do Projeto de Lei de Conversão (embora diversos outros, igualmente “matéria estranha”, tenham sido mantidos). Desses, por meio de recursos aprovados em Plenário, 8 retornaram ao texto, sendo mantidos pelo Plenário.
Face à polêmica sobre o uso dessa prerrogativa, o Presidente da Câmara dos Deputados, ainda no dia 19 de maio, anunciou novo entendimento sobre a matéria: a partir dessa data, o Presidente não mais irá retirar artigos, incluídos em parecer sobre medida provisória, que tratarem de temas estranhos ao assunto original da MP. Segundo o Presidente da Câmara:
“Sim, vou mudar o procedimento de interpretação sobre matérias estranhas em MPs. Não posso, como presidente da Câmara, alterar decisão tomada em comissão mista do Congresso Nacional. (…) Na medida em que o Congresso delibera e retiro uma matéria, estou retirando uma matéria votada por uma comissão mista de deputados e senadores, e não me cabe fazer isso. Os partidos é que devem votar na comissão mista a respeito do que considerarem que é matéria estranha; não a Câmara.”
Essa decisão, contudo, apenas revela o desconforto do Presidente com a decisão de seus antecessores, aplaudida pelos Líderes e por muitos deputados, mas que, de fato, lhe acarretava ônus político, fosse ao declarar não escritos artigos e inválidas emendas apresentadas às medidas provisórias, fosse ao mantê-las, exercendo, ainda que assessorado tecnicamente pelo corpo técnico da Casa, um juízo que, em muitos casos, mostrava-se casuísta e discricionário – como no caso da própria Medida Provisória nº 668.
Não obstante, ela também revela, mais uma vez, a dificuldade de fazer valer, no processo legislativo, regras que têm sua significação, precisamente, para impedir desvios de finalidade, e o abuso de ritos sumários como forma de produção normativa.
A Resolução nº 1, de 2002, do Congresso Nacional, que disciplinou o trâmite das Medidas Provisórias, é extremamente clara quanto a isso: segundo o já citado art. 4º, § 4º, “é vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na Medida Provisória, cabendo ao Presidente da Comissão o seu indeferimento liminar.” Já o § 4º do art. 5º define o que compete à comissão, quanto ao mérito:
“§ 4º Quanto ao mérito, a Comissão poderá emitir parecer pela aprovação total ou parcial ou alteração da Medida Provisória ou pela sua rejeição; e, ainda, pela aprovação ou rejeição de emenda a ela apresentada, devendo concluir, quando resolver por qualquer alteração de seu texto:
I – pela apresentação de projeto de lei de conversão relativo à matéria; e
II – pela apresentação de projeto de decreto legislativo, disciplinando as relações jurídicas decorrentes da vigência dos textos suprimidos ou alterados, o qual terá sua tramitação iniciada pela Câmara dos Deputados.”
Ao teor desse dispositivo, não poderia o Relator apresentar emendas suas, contendo matéria estranha à tratada na Medida Provisória, devendo o seu parecer, assim, cingir-se a aprovar ou rejeitar a medida provisória como apresentada, ou a acatar ou rejeitar as emendas a ela apresentadas no prazo de seis dias a contar da sua publicação, desde que com ela guardem conexão ou pertinência. Mas é competência do Presidente da comissão, em primeira análise, decidir em que casos a emenda é ou não “matéria estranha”.
No entanto, não sendo essa prerrogativa exercida pelo Presidente da Comissão Mista caberia, subsidiariamente, a aplicação pelo Presidente da Câmara dos Deputados da norma prevista no Regimento Interno dessa Casa, que, assim como o disposto na Lei Complementar nº 95, de 1998, é de observância obrigatória, e não facultativa, por aqueles a quem compete a elaboração das normas legais.
Note-se que mesmo o Regimento Interno do Senado Federal estabelece limitação ao poder de emenda. Segundo o art. 230 do RISF:
“Art. 230 Não se admitirá emenda:
I – sem relação com a matéria da disposição que se pretenda emendar;
……………………”
Assim, não seria estritamente contrário à norma regimental que, mesmo a Câmara dos Deputados havendo aprovado emendas à medida provisória, na forma de Projeto de Lei de Conversão, cujo conteúdo não detenha a pertinência temática necessária, que as mesmas sejam consideradas insubsistentes por decisão do Senado Federal, em vista da previsão regimental que é asseguradora, ela mesma, do devido processo legislativo.
Em face da decisão do Presidente da Câmara dos Deputados em 19 de maio de 2015, novos episódios passaram a demonstrar o retorno à leniência no curso do processo legislativo. Um dos mais destacados exemplos é o Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2015, à Medida Provisória nº 678, de 2015. A MPV 678, editada com apenas um artigo, inserindo dois incisos ao art. 1º da Lei nº 12.462, de 2011, recebeu, perante a Comissão Mista, 72 emendas. Em sua apreciação o Relator apresentou parecer acatando, formalmente, 11 emendas, na forma de um PLV contendo 8 artigos, os quais introduziram 42 dispositivos novos, dos quais 37 não guardavam nenhuma pertinência temática com a MPV editada, que tratava, tão-somente, de ajustes à legislação do Regime Diferenciado de Contratações para permitir a sua aplicação nas licitações e contratos de construção, ampliação e reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo e nas ações de Segurança Pública.
Em sentido oposto, atendendo ao espírito do disposto no § 4º do art. 4º da Resolução nº 1-CN, de 2002, o Relator da MPV 682, de 2015, ofereceu em 14 de outubro de 2015, parecer às 27 emendas apresentadas, concluindo que
“apenas quatro tratam de temas diretamente relacionados à MPV nº 682, de 2015, ou, de forma conexa, ao seguro rural, quais sejam: 18, 19, 23 e 24. A princípio, as demais, por não preencherem os requisitos de admissibilidade, devem ser rejeitadas.”
Na esteira desse importante aspecto da tramitação de medidas provisórias que compromete fortemente a sua validade sob a perspectiva da constitucionalidade, o Plenário do Supremo Tribunal decidiu, no julgamento da ADI nº 5.127, em 15 de outubro de 2015, ser inconstitucional a prática do “contrabando legislativo”, caracterizado pela introdução de matéria estranha em projetos de lei de conversão.
Sem desconhecer a validade do emendamento às proposições originadas do Poder Executivo em matéria não sujeita a reserva de iniciativa, condenou o STF a discussão de normas que irão regular a vida em sociedade por meio de rito sumário violando o direito fundamental ao devido processo legislativo, alijando-se ou restringindo-se o debate e a participação do cidadão. Somente a matéria que, nos mesmos termos da própria medida provisória, fosse dotada de relevância e urgência, é que poderia ser assim considerada. Assim não estaria conforme a Constituição, ferindo o regular processo democrático legislativo, a admissão de emenda parlamentar sem pertinência temática com a matéria versada na medida provisória. Não estaria, no caso, segundo a Min. Rosa Weber, presente “apenas mera inobservância de forma, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que intencionalmente ou não subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprio ao rito ordinário a discussão sobre normas que irão regular a vida em sociedade”. Viola, assim, o direito fundamental, de titularidade difusa, ao devido processo legislativo, de não sofrer influência na esfera privada de direitos senão mediante normas jurídicas produzidas em conformidade com procedimento constitucionalmente determinado.
Em sua decisão, embora tenha julgado improcedente o pedido formulado na ação direta de invalidação da Lei produzida, o STF decidiu pela cientificação do Poder Legislativo, com efeitos ex nunc, não ser compatível com a Constituição a apresentação de emendas sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida a sua apreciação.
O relator para o Acórdão, ministro Edson Fachin, concordou que a prática de incluir emendas sobre temas estranhos ao conteúdo do texto original “não é desejável nem salutar”, e que a prática sistemática de edição de emenda com conteúdo temático distinto desobedece a Constituição, aplicando-se, todavia, o entendimento para as deliberações futuras, não atingindo, assim, as leis já promulgadas que tenham resultado de medidas provisórias emendadas sem a observância do devido processo legislativo. Seguiram esse mesmo entendimento os ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Celso de Mello, enquanto a Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber deferiam o pedido em sua inteireza, declarando, inclusive, a inconstitucionalidade do dispositivo legal resultante da emenda inconstitucionalmente aprovada.
A tese da necessidade de pertinência temática ou material em emendas a medidas provisórias, no entanto, não é nova no STF. Em decisão recentíssima, na ADI nº 4.433 (18.06.2015), também relatada pela Min. Rosa Weber, o STF assim decidiu:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.433 (1)
E M E N TA
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 3º DA LEI Nº 15.215/2010 DO ESTADO DE SANTA CATARINA. CONCESSÃO DE GRATIFICAÇÃO A SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. DISPOSITIVO INCLUÍDO POR EMENDA PARLAMENTAR EM PROJETO DE CONVERSÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA. MATÉRIA DE INICIATIVA PRIVATIVA DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO. SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. REMUNERAÇÃO. AUMENTO DA DESPESA PREVISTA. VEDAÇÃO. MATÉRIA ESTRANHA AO OBJETO ORIGINAL DA MEDIDA PROVISÓRIA SUBMETIDA À CONVERSÃO. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. VÍCIO DE INICIATIVA. ARTS. 2º, 61, § 1º, II, “A” E “C”, 62 E 63, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRECEDENTES.
1. Segundo a jurisprudência reiterada desta Suprema Corte, embora o poder de apresentar emendas alcance matérias de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, são inconstitucionais as alterações assim efetuadas quando resultem em aumento de despesa, ante a expressa vedação contida no art. 63, I, da Constituição da República, bem como quando desprovidas de pertinência material com o objeto original da iniciativa normativa submetida a cláusula de reserva. Precedentes.
2. Inconstitucionalidade formal do art. 3º da Lei nº 15.215/2010 do Estado de Santa Catarina, por vício de iniciativa. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.”(grifo nosso)
Não obstante essa decisão ter sido adotada em 15 de outubro de 2015, e amplamente noticiada, em 21 de outubro de 2015 o Plenário do Senado Federal adotou decisão que a contraria frontalmente.
Não obstante o parecer do relator Revisor à MPV 678, de 2015, senador Telmário Mota, ter concluído pela supressão dos dispositivos decorrente de emendas aprovadas pela Câmara dos Deputados na forma do Projeto de Lei de Conversão, por não haver pertinência temática, o Senado Federal rejeitou, por 37 a 24, requerimento de preferência ao texto da MPV original e, em votação simbólica, aprovou o texto do Projeto de Lei de Conversão. Uma das alegações, feita então pelo Senador Ronaldo Caiado, é de que a decisão do STF sobre a matéria na ADI 5.127 ainda não fora publicada, embora, como destacado pelo Presidente do Senado Federal, já fosse amplamente conhecida. Prevaleceu, assim, decisão soberana do Plenário validando a decisão da Câmara dos Deputados – e gerando um projeto de lei de conversão eivado de inúmeros “contrabandos” legislativos.
Com efeito, não se mostrava necessário aguardar a publicação da decisão adotada na ADI 5.127 para concluir que deveria o Poder Legislativo, visando a garantir a segurança jurídica do processo legislativo e das leis aprovadas a partir de então, adotar medidas imediatas no sentido de escoimar, dos textos de projetos de lei de conversão ainda não apreciados, os conteúdos inequivocamente qualificados como matéria estranha, sem pertinência temática ou material, e cuja inclusão no texto não responda, igualmente, aos requisitos de urgência e relevância que justificam a adoção do rito sumário de tramitação das medidas provisórias. Ignorar o entendimento do STF, no aguardo da publicação da decisão ou mesmo do Acórdão do julgamento, poderia apenas produzir leis inconstitucionais, passíveis de imediata arguição de inconstitucionalidade, aumentando a insegurança jurídica.
Independentemente dessa providência, cumpre destacar a necessidade de que a Resolução nº 1-CN, de 2002, seja ajustada, a fim de refletir a determinação e o entendimento do Supremo Tribunal Federal, mas também de forma a preservar a prerrogativa de emendamento aos membros do Congresso Nacional.
Nesse sentido, acha-se em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Resolução nº 6, de 2015, do Senador Walter Pinheiro, que promove alterações à Resolução nº 1-CN, de 2002, com o propósito de, efetivamente, delimitar o conteúdo de emendas passíveis de serem acatadas pelos Relatores em medidas provisórias e delimitar a possibilidade de emendas formuladas pelos próprios relatores. A proposta atribui, sucessivamente, ao presidente da comissão mista o indeferimento liminar de emendas que versem sobre matéria estranha ao objeto da Medida Provisória, e ao Presidente da Câmara dos Deputados ou ao Presidente do Senado Federal, o seu não conhecimento, bem assim a supressão, do texto a ser apreciado em Plenário, dos dispositivos delas resultantes, caso a prerrogativa não tenha sido exercitada, ou se a própria comissão houver aprovado alterações ao texto que não observem ao requisito da pertinência temática. Define-se como matéria estranha: I – a que não estiver diretamente relacionada ao conteúdo material e objeto da Medida Provisória, conforme expresso na ementa da medida provisória; II – a que não guardar relação de complementaridade, afinidade, pertinência ou conexão temática com o objeto da medida provisória; ou III – a que, mesmo relacionada ao conteúdo material e objeto da Medida Provisória, ou que com ela guarde relação de complementaridade, pertinência ou conexão, não apresentar razões de urgência e relevância para sua veiculação.
Os dispositivos suprimidos do projeto de lei de conversão por serem matéria estranha, porém, serão convertidos em projeto de lei, tendo como autor a Comissão Mista, e cuja tramitação iniciará na Câmara dos Deputados. Ao autor da emenda não aceita é assegurado o direito de recurso contra a decisão do Presidente, na Comissão, ao plenário desta, com o apoio de 3 membros, e ao plenário de cada Casa, contra a decisão dos respectivos presidentes, com o apoio de um décimo dos seus membros, ou líderes que representem esse número.
A proposta prevê ainda que se o Senado Federal aprovar emendas ou destaques supressivos de dispositivos do projeto de lei de conversão resultantes de emendas aprovadas pela Comissão Mista ou pelo Plenário da Câmara dos Deputados, não constantes da Medida Provisória editada, os dispositivos rejeitados ou suprimidos constituirão projeto de lei em separado, e remetidos à Câmara dos Deputados, sem prejuízo do encaminhamento à sanção dos autógrafos do texto aprovado em ambas as Casas. Dessa forma, evitar-se-ia o retorno à Câmara dos Deputados do texto que tenha sido aprovado por ambas as Casas, e, assim, o risco de perda de eficácia da medida provisória originalmente editada na forma de projeto de lei de conversão, e seus dispositivos validamente aprovados.
Parece-nos que, indubitavelmente, o projeto de resolução, quanto aos aspectos destacados, oferece respostas satisfatórias à problemática, aperfeiçoando o processo de exame das medidas provisórias, mas sem prejudicar o poder de emenda e a consequente tramitação, como proposições autônomas, das emendas liminarmente indeferidas, ou que, deferidas ou acolhidas mediante recurso, venham a ser suprimidas por decisão dos presidentes das Casas, sem o acatamento de recurso pelos plenários.
A proposição, porém, não enfrenta a necessidade, que ora se mostra mais do que nunca relevante, de que o Congresso Nacional, por meio da própria comissão mista ou deliberação de suas Casas, emita, juntamente com o julgamento de que estejam presentes na edição da Medida Provisória os requisitos de admissibilidade previstos no “caput” do art. 62 (urgência e relevância), também juízo sobre a observância da “pertinência temática”. Esse juízo poderia ser atribuído à comissão mista ou, mesmo, em caráter preliminar, ao Presidente do Congresso Nacional, promovendo-se, assim, se for o caso, no próprio ato de recebimento da norma editada pelo Chefe do Poder Executivo, o seu desmembramento, em tantas proposições quantas forem necessárias, de medida provisória eventualmente editada sem a observância do disposto no art. 7º da Lei Complementar nº 1998.
Antecipando, em parte, esse debate, em 27 de outubro de 2015 o presidente do Senado Federal proferiu decisão em questão de ordem formulada pelo Senador Ronaldo Caiado em 2 de julho de 2015, concluindo, com fundamento no § 5º do art. 62 da CF, pela necessidade de que seja aferida pelo Senado a existência de pertinência temática e observância dos requisitos de admissibilidade de urgência e relevância também quanto às alterações promovidas na forma de PLV oriundo da Câmara dos Deputados. Todavia, o senador Renan Calheiros transferiu a cada Senador a possibilidade de apresentar Destaques para votação em separado dos dispositivos ou emendas que não tenham pertinência temática, urgência e relevância, não observem a reserva de iniciativa e as limitações materiais, visando a sua supressão do texto a ser promulgado ou submetido à sanção, cabendo ao Plenário, em sequência, exercer o juízo preliminar sobre o atendimento dos pressupostos de admissibilidade da medida provisórias e emendas a ela incorporadas. A decisão, porém, silenciou quanto à possibilidade de o Relator da Medida Provisória oferecer parecer pela supressão dos “contrabandos”, ou mesmo de o Presidente declarar tais dispositivos não escritos. É de se supor, porém, que o Relator deverá se manifestar sobre o tema, visto que é o agente competente para proferir parecer em plenário sobre o atendimento daqueles requisitos constitucionais. Reconheceu, assim, a soberania do plenário para decidir sobre a ocorrência de tais situações.
Evidentemente, nenhuma norma legal será capaz de sobrepor-se à vontade do Parlamento, reservando-se, sempre, ao chefe do Poder Executivo, durante a apreciação do texto enviado à sanção, o poder de veto, com base em juízo de inconstitucionalidade. E, mesmo sancionada a emenda sem pertinência temática, caberá sempre aos prejudicados – sejam eles parlamentares ou cidadãos – o direito ao recurso ao Poder Judiciário.
* Consultor legislativo do Senado Federal e advogado, é mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais e professor da EBAPE/FGV. Foi subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República (2003-2014).
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