Daniel Bin*
A última eleição presidencial brasileira se mostrou de forma relativamente clara como mais uma batalha na velha luta de classes. Durante a campanha, pesquisas de intenção de voto sinalizavam ampla vantagem de Lula junto aos mais pobres. Com ele recém eleito, já vimos a primeira forte reação das classes dominantes sintetizada na depreciação de ativos financeiros. A semana em que Lula discursou perguntando “por que que a gente tem meta de inflação e não tem meta de crescimento” encerrou-se com o Ibovespa tendo caído 5% e a cotação em reais do dólar estadunidense tendo subido 5,45%. Ao ouvir os tiros de advertência, Lula simulou dar de ombros dizendo “se eu falar isso vai cair a bolsa, vai aumentar o dólar? Paciência”.
Tratava-se de fenômeno típico desses tempos de regulação econômica neoliberal. No caso concreto, bastou o futuro presidente começar a se mover conforme o Bolsa Família prometido em campanha para a finança tentar resgatar o teto de gastos fruto do golpe de 2016. Desmontado pela emergência da pandemia, o teto Temer seguiu sendo furado para que o atual governo tentasse comprar a reeleição do seu chefe. Em meio a isso, apoiadores de Lula viram alguma hipocrisia de quem pouco reagira à extravagância fiscal de Bolsonaro para, agora, elevar o tom contra o presidente recém eleito.
Penso de forma distinta, e por uma razão relativamente simples: credores não rasgam dinheiro. Não interessa à finança que Bolsa Família ou qualquer outro gasto social tenha o mesmo privilégio fiscal dado aos juros da dívida pública, estes não alcançados pelo teto de gastos. A ela interessa a limitação do gasto primário no virtual concurso de credores engendrado pelo orçamento público em tempos de financeirização neoliberal. Sinais outrora dados por Bolsonaro também mostravam que a finança não rasgaria dinheiro, mesmo vislumbrando vantagens com a sua reeleição.
O motivo que a fez calar-se quando o presidente mexeu na regra do teto visando a renovar seu mandato não é contraditório ao que a faz contrapor-se ao esforço de Lula em ampliar o espaço fiscal para viabilizar o novo Bolsa Família. Ocorre que Bolsonaro abriu o teto por prazo determinado, justamente o que finança e Centrão—cada um com seus objetivos—tentam agora impor a Lula. Adicione-se que o Auxílio Brasil tinha redução de valor já sinalizada. Bolsonaro enviara proposta de orçamento para 2023 prevendo R$ 405 de benefício mensal por família, o qual Lula prometera elevar para R$ 600 acrescidos de R$ 150 por criança de até seis anos de idade. Como o resultado eleitoral frustrou aquelas expectativas, resta à finança tentar impor a Lula o que a ela foi prometido por Bolsonaro.
Enfim, a finança não está tratando as duas principais forças políticas brasileiras de modos distintos—como, aliás, a quase totalidade do mundo está. Por ora, é ela que está sendo tratada de modo diferente. Durante a campanha, cobrava-se de Lula uma segunda edição da “Carta ao povo brasileiro”, mas o que mais disso se aproximou frustrou os destinatários. Já eleito, Lula classificou o teto de gastos como “tenta[tiva] de desmontar tudo aquilo que faz parte do social”. Ao ser rebatido em “carta de pessoas importantes”, ensaiou moderação e disse saber ouvir e seguir conselhos, “se fizer sentido”. No entanto, também falou: “Vou aumentar o salário mínimo, vou voltar a gerar emprego neste país, e vamos voltar a ser responsáveis do ponto de vista fiscal sem precisar atender a tudo o que o sistema financeiro quer”.
Lula parece estar testando limites com vistas a ampliá-los. Obviamente, temos de aguardar para avaliar o que vai conseguir. De todo modo, o retorno ao governo de preocupações mais à esquerda deve reanimar um debate ofuscado por ideologias promovidas pela direita partidária, aparato estatal e classes proprietárias. Um dos desafios do novo governo será ampliar esse debate junto aos segmentos populares procurando esclarecer que a assim chamada responsabilidade fiscal não é um valor universal; ela envolve antes de tudo posicionamentos em relação a classes sociais.
*Professor da Universidade de Brasília, é autor de ‘The politics of public debt’ (Brill, 2020).
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