Charles Alcantara*
O Brasil é o paraíso das “otoridades”. Gentes que se servem do Estado, ao mesmo tempo que o maldizem e o esculacham.
São essas gentes que querem “reformar” o Estado para torná-lo ainda mais “seu” e menos ainda do público.
Não é outra a pretensão da PEC 32/2020, que tem tudo a ver com apropriação privada do aparelho estatal, pelas elites econômicas e políticas, e nada a ver com reforma administrativa.
Em 2012, o servidor do Ibama, José Augusto Morelli, autuou e multou em R$ 10 mil o então deputado federal Jair Bolsonaro, por pesca ilegal, multa, aliás, cancelada pelo Ibama. Em março de 2019, quando o país já se encontrava sob a presidência do ex-autuado, o servidor autuante foi exonerado do cargo de Chefe do Centro de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental.
Em julho de 2020, em plena pandemia, uma dessas “otoridades”, o desembargador Eduardo Siqueira, caminhava na orla de Santos (SP), sem máscara, quando foi abordado por um guarda municipal que lhe solicitou que pusesse a máscara. O país inteiro assistiu ao desembargador rasgar a folha de multa e atirar os pedaços contra o servidor público. A cena foi registrada por outro guarda municipal que acompanhava a abordagem.
Na semana passada, dois casos de repercussão que se somam a milhares de casos anônimos de assédio, constrangimento e abuso contra servidores públicos no exercício de suas funções ou mesmo no livre exercício de sua cidadania.
Alexandre Saraiva, delegado de carreira da Polícia Federal, então Superintendente da PF no Amazonas, apresentou notícia-crime contra o ministro do Meio-Ambiente, Ricardo Salles, no Supremo Federal, apontando a suposta ocorrência de crimes em série: advocacia administrativa, organização criminosa e abstenção da ação fiscalizadora do Estado em questões ambientais. Resultado: o denunciante foi exonerado do cargo de Superintendente da PF naquele Estado.
Na mesma semana, a Auditora Fiscal do Estado do Rio Grande do Norte, Alyne Bautista, foi presa, sob acusação de descumprimento de ordem judicial, por insistir em sua militância em defesa do erário estadual.
Alyne denunciara supostas irregularidades em contratos firmados há anos entre o Poder Público e uma empresa que tem como sócio um conhecido juiz do Rio Grande do Norte.
Os contratos denunciados pela servidora pública, frise-se, foram suspensos por recomendação do TCE, mas o valor até então pago à empresa alcança a cifra de R$ 3,6 milhões. A decisão do TCE-RN é de maio de 2020. Adivinhem quem foi parar na cadeia? A servidora pública denunciante.
Exoneração de cargos de chefia, ameaça, assédio, constrangimento, prisão e, no limite, execução. Eis a dura realidade vivida por um sem-número de servidores públicos que ousam aplicar as leis contra “otoridades” investidas de poder legal ou político, ou de ambos.
Em comum, a dar um mínimo de segurança ao servidor do Ibama, ao guarda municipal de Santos, ao delegado da PF e à Auditora Fiscal do RN, o concurso público e a estabilidade funcional.
Não fosse isso, os servidores públicos e a sociedade brasileira ficariam absolutamente à mercê das “otoridades”.
Concurso público e estabilidade funcional. São essas salvaguardas da democracia e da República que as “otoridades” patrocinadoras da Pec 32 querem aniquilar.
*Presidente da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital – Fenafisco
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