Francisco Gaetani e Gabriela Lotta*
O trânsito de altos dirigentes, ocupantes de cargos de confiança sensíveis, foi razoavelmente regulamentado e vinha funcionando bem até o final do governo Temer. Respeitava-se uma classificação dos cargos, cuja liberação dos ocupantes para novas oportunidades profissionais no mercado era condicionada ao cumprimento de uma quarentena, de modo a se mitigar o risco de utilização de informações privilegiadas, colhidas no exercício da função pública, para fins particulares. Mas, infelizmente, o atual governo tem demonstrado um grande desinteresse pelo assunto e por fazer valer as normas, gerenciando-as de forma subjetiva e discricionária.
A legislação, que já existe, abrange tanto funcionários públicos quanto profissionais que não pertençam à administração pública, ambos ocupantes eventuais de cargos de confiança. Esses dispositivos estão previstos nos Decretos 4187, de 08/04/2002, e no 6029, de 01/02/2007, além da Lei 12.813, de 16/05/2013, cuja aplicação ficava à cargo da Comissão de Ética da Presidência da República.
Esses dispositivos – e sua aplicação – são bastante importantes para limitar e regulamentar o fenômeno chamado “porta giratória”, que é quando os ocupantes de cargos de confiança saem do governo para assumir postos em organizações privadas que atuam no mesmo setor. O grande risco é de que as informações sensíveis e privilegiadas adquiridas durante o cargo público sejam passadas diretamente para o setor privado. Regular este fenômeno é, portanto, uma forma de proteger não apenas a administração pública, mas também o próprio mercado (concorrentes) e a sociedade.
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O assunto é particularmente intrigante quando são considerados os variados tipos de filtros adotados atualmente na Casa Civil para permitir que profissionais sejam indicados para cargos no governo. Várias pessoas têm sido desconvidadas para a ocupação de postos de confiança não pelas razões ordinárias – como, por exemplo atrasos em dívidas junto ao Fisco ou participação na direção de empresas. Critérios opacos, presumidamente oriundos do monitoramento da atuação pública destes profissionais em redes sociais e de suas relações pessoais, vêm sendo utilizados desde o início do governo para barrar nomeações. Há, inclusive, relatos das chamadas “listas vermelhas”, construídas a partir dos nomes de pessoas que não poderão assumir cargos devido às suas posições políticas.
O resultado desse quadro é estranho. O ingresso no governo, caracterizado por uma impressionante rotatividade em ministérios como Casa Civil, Secretaria Geral, Secretaria de Governo, Ministério da Educação, Ministério da Saúde, Ministério da Justiça e Ministério da Cidadania – dentre outros, é policiado ideologicamente por critérios desconhecidos, sussurrados pelos corredores da Presidência. Ao mesmo tempo, a saída de pessoas do governo vem ocorrendo de forma desembaraçada, sem constrangimentos, capitalizada pelos contratantes no mercado, de forma a sinalizar para a clientela o recrutamento de profissionais capazes de valorizar sua marca. Completando o quadro, nem os órgãos de controle nem a mídia – noutros tempos, tão vigilantes e ciosos de seus papéis fiscalizadores – parecem enxergar problemas no processo atual. Uma pena.
A vinda de profissionais de fora da administração pública é importante para a oxigenação da máquina, internalização de tração política para o governo, adoção de boas práticas, introdução de inovações e incorporação de tecnologias do mercado aos processos governamentais de produção de valor público. A ida de servidores públicos para o mercado – em definitivo ou em períodos de licença por tempo determinado – auxilia empresas a melhorarem suas relações com os governos, aprimorarem sua interação com órgãos reguladores e proporcionarem desenvolvimento de novos mercados na interseção dos setores públicos e privados. Não há, em princípio, nada de errado nisso, desde que essas movimentações ocorram de forma transparente e observando as normas destinadas a regulamentá-las. Mas, ao não acatar regulamentações e ao não atuar com transparência, essas movimentações se transformam em um grande problema ético, político e potencialmente econômico.
O desmanche institucional em curso possui várias dimensões: os padrões éticos do serviço público constituem apenas uma delas, pouco visível para a opinião pública, já cegada e anestesiada por sucessivos comportamentos que se situam além da esfera da normalidade de um convívio social saudável e democrático.
A reorganização do Estado brasileiro será penosa, seja qual for o governo eleito para suceder o atual, nas eleições que se aproximam ou em quatro anos. O debate sobre corrupção que embriagou a sociedade brasileira precisa incorporar práticas que não dão espaço para a malversação de recursos públicos. Medidas preventivas costumam ser mais efetivas, embora menos pirotécnicas e midiáticas, que aquelas pautadas pelo punitivismo e pelo desrespeito aos devidos processos legais.
As portas giratórias da administração pública não se constituem em um problema em si, pelo contrário, elas proporcionam um saudável trânsito entre pessoas e ideias dos setores público e privado (que abrange o ambiente empresarial e o terceiro setor, sem fins lucrativos). Porém, sem normas disciplinando-as e sem porteiros atentos, elas podem vir a gerar graves transtornos para o Estado brasileiro.
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* Francisco Gaetani é professor da Ebape/FGV e presidente do Conselho de Administração do República.org; Gabriela Lotta é professora da Eaesp/FGV e integrante do Conselho de Administração do República.org. Ambos integram a lista dos cem acadêmicos mais importantes do mundo pelo portal Apolitical.
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