Sergio Moro deixou o cargo de ministro da Justiça no último dia 24. Já não era segredo que seu chefe não mais o queria na Esplanada. Talvez encorajado pelo baixo custo político incorrido com a recente demissão do ministro da Saúde, Bolsonaro aproveitou as chances dadas pela conjuntura pandêmica para livrar-se de mais um incômodo. Contudo, não podemos descartar a hipótese de que também Moro tenha visto na mais recente investida de Bolsonaro sobre a Polícia Federal uma oportunidade, de todo modo arriscada.
A passagem do agora ex-ministro da Justiça pelo governo não vinha sendo exatamente um sucesso. A entrada foi ruidosa entre parcelas da opinião especializada, que associaram seus comportamentos quando juiz a desenvolvimentos ulteriores da política nacional. No meio do ano passado foram reveladas mensagens privadas indicativas de que o então juiz orientara investigadores da Operação Lava Jato. Moro terminou seu primeiro ano no governo vendo o assim chamado pacote anticrime ser sancionado sem pontos que considerava fundamentais aos seus planos para a pasta que chefiava.
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Moro não saiu do governo conforme o figurino. Nas últimas horas como ministro, revelou supostos malfeitos de seu chefe que levaram o procurador-geral da República a pedir ao Supremo Tribunal Federal abertura de inquérito para apurar as acusações. Ainda que o conteúdo das revelações não deva ter surpreendido ninguém minimamente atento a Bolsonaro, o ato de Moro não deixa de ser peculiar. O que normalmente se espera do demissionário é a resignação, pois dentre outras razões tende a pensar em seu futuro político. Delatores serão sempre vistos como delatores.
PublicidadeEssa forma de pensar nos respectivos futuros é típica de políticos normais. Houve quem imaginasse que o ex-ministro Henrique Mandetta, da Saúde, teria coisas a dizer sobre Bolsonaro ao ser demitido em momento tão delicado. Talvez tivesse, mas talvez elas não acrescentassem muito ao que já era possível imaginar a partir das irresponsabilidades sanitárias do chefe. Fato é que Mandetta saiu conforme o esperado nessas horas. Para crescer politicamente, bastou agir como um político normal, o que em tempos anormais e dentro de um governo anormal é sempre uma oportunidade.
Moro é um político de outro tipo, cujos traços apareciam antes mesmo de virar ministro. Preocupava-se, por exemplo, com a opinião pública como meio de sustentação da Lava Jato, operação espetaculosa que o alçou ao centro da política nacional. Uma vez no governo, ele até vinha desempenhado com algum êxito a arte política da resignação. Mas faltavam-lhe as condições de que dispõem aqueles que desenvolvem suas carreiras dentro da política partidária. Moro não era do ramo.
Se algum dia acreditou que Bolsonaro cumpriria a promessa de indicá-lo para o Supremo Tribunal Federal, Moro pode muito bem ter passado a acreditar que a escolha viesse mesmo a recair sobre alguém “terrivelmente evangélico”, por exemplo. Também já eram conhecidos os métodos bolsonaristas para defenestrar aliados incômodos, ainda que os chamados superministérios, como o da Justiça, pudessem parecer imunes. O problema é que o bolsonarismo não admite superministros ou qualquer protagonismo que não o do chefe, como bem mostrou o caso Mandetta.
Moro deve ter notado que, enquanto todos olhavam para o lado — refiro-me à pandemia —, Bolsonaro aproveitaria a chance para tentar retomar espaços que temia estar perdendo ou mesmo tentar obter maior controle sobre outros. Intervir na pasta da Saúde foi o primeiro movimento. Outro foi colocar sob coordenação da Casa Civil o arremedo de plano de recuperação econômica intitulado Pró-Brasil, deixando o Ministério da Economia de lado. A demissão do diretor-geral da Polícia Federal outrora escolhido por Moro parece ter servido ao mesmo propósito.
O que restava a Moro naquelas circunstâncias? Talvez não muito mais que cair atirando, como diz o chavão. Disparou contra um passado recente do qual fez parte. Seu pronunciamento visava a mostrar que ele, Moro, definira um limite ético que Bolsonaro decidiu ultrapassar. Mas Moro não olhou apenas para o passado. Primeiramente, colocou em dúvida a própria capacidade de um futuro diretor-geral a ser escolhido pelo presidente resistir a possíveis interferências deste último em temas de competência da Polícia Federal: “eu fico na dúvida se vai conseguir dizer não”.
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A outra sinalização de Moro sobre o futuro foi sobre o seu próprio. No pronunciamento de despedida disse ter uma biografia a preservar. Mas quem um dia se dispôs a auxiliar Bolsonaro terá dificuldades de convencer que apenas naquele momento viu motivos para reagir contra intenções consideradas impróprias. Ideias desprezíveis sobre a vida em sociedade que em janeiro de 2019 se instalaram no gabinete presidencial, mais do que conhecidas, eram parte de um plano de governo. E o que Bolsonaro fez nesses últimos dias não é nada estranho ao que se poderia esperar. Aliás, o próprio Moro reconheceu que Bolsonaro já tentara interferir no comando da Polícia Federal, pivô da ruptura.
A indicação mais significativa de Moro sobre um eventual futuro político foi dada por meio do clássico “eu sempre vou estar à disposição do país”. É um clichê, claro, mas nem por isso pouco importante. Rapidamente começaram as especulações sobre Moro estar colocando-se à disposição para a disputa presidencial de 2022. Há alguns sinais que apontam para isso, dos quais o mais explícito foi a própria forma estrepitosa com que Moro se despediu do governo.
Mas uma eventual jornada eleitoral de Moro deve enfrentar obstáculos importantes já a partir do início. A primeira e mais óbvia é que o seu adversário imediato ocupa a cadeira de presidente da República, ativo sempre valioso como bem sabem os partidos do chamado Centrão. Foi esse o primeiro grupo a sinalizar disposição de cerrar fileiras na defesa contra eventuais ameaças ao mandato de Bolsonaro. Também não há sinais de que os militares alojados na Esplanada e outros órgãos do governo queiram grandes mudanças. O pato amarelo da Fiesp e os farialimers preferem não comentar.
Por ora, o que se desenha é uma disputa que terá como primeiro reflexo a divisão da própria base bolsonarista. Quaisquer que sejam as proporções daí resultantes, importa notar que ficará ainda mais complexa uma disputa que já se antecipava dentro da direita mais ampla. Se Bolsonaro e o governador paulista João Doria já andavam se acotovelando no corredor que leva a 2022, agora talvez passem a ter a companhia de Moro.
O ex-ministro terá ainda outro obstáculo importante: manter-se em evidência durante os próximos dois anos, disputando espaço com uma pandemia com duração e reflexos ainda incertos. Adicione-se que nesses próximos dois anos Bolsonaro — isso se ele preservar o mandato — e Doria estarão de alguma forma envolvidos em esforços de recuperação pós-pandemia. E Moro? Onde quer que esteja, não terá vida fácil para construir alianças, ainda mais depois de ter revelado via Jornal Nacional conversas que teve com o próprio chefe.
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* Daniel Bin é professor da Universidade de Brasília e autor de ‘A superestrutura da dívida’ (ed. Alameda).
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