As discussões judiciais em torno do embate entre Jair Bolsonaro e Sergio Moro que entraram na agenda política brasileira estão obscurecendo a questão principal: que razões levaram o presidente a atropelar sem piedade o seu mais popular ministro? O que está por detrás da insistência dele em pedir a cabeça do ex-diretor da Política Federal? Há um motivo forte para o presidente ter se exposto tanto, desgastando ainda mais a credibilidade de seu governo em meio a uma crise nacional sem precedentes provocada pela disseminação da covid-19 e pela paralisação parcial da economia.
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O motivo da demissão de Moro não pode ser creditada ao temperamento intempestivo do presidente. Há razões mais graves que precisam ser retomadas pela agenda da mídia e da política nacional.
Que motivos são estes? O que levou o presidente a um ato radical, consciente dos riscos políticos? Bolsonaro foi informado que as apurações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito das Fake News e, principalmente, do inquérito do STF sobre o mesmo tema, com a colaboração da Polícia Federal, envolvem diretamente membros da ‘famiglia’ presidencial. O esquema de disseminação fraudulenta de notícias, denunciado já na campanha eleitoral, continuou ativo após a posse de Bolsonaro.
A milícia digital atua maquiavelicamente no Gabinete do Ódio, instalado no terceiro andar da Presidência da República, bem ao lado do gabinete do presidente. Financiado em parte pelos cofres públicos, pois os disseminadores das falsas notícias são assessores pagos por verba oficial que utilizam gabinetes, equipamentos e serviços oficiais.
O senador Ângelo Coronel (PSD-BA), presidente da CPMI do Congresso, revelou que o Facebook e o WhatsApp já lhe entregaram o número dos IPs das máquinas suspeitas. O IP (Internet Protocol) é um rótulo numérico que permite o rastreamento de cada dispositivo conectado à rede. Com este número, é possível identificar de onde partiram as fake news. Eles já estão de posse da Polícia Federal.
PublicidadeO jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense, revelou na última semana que a PF já tem também os nomes dos empresários que financiam a máfia digital. Ou seja, o cerco à ‘famiglia‘ Bolsonaro está se estreitando. Não é só a família Bolsonaro que está alarmada. Muitos deputados que atuam em parceria com o Gabinete do Ódio sabem que seus nomes estão na iminência de serem revelados e cobraram ao presidente a mudança na PF. O final do Inquérito do STF está previsto para o próximo mês de maio, quando deverá ser enviado ao Ministério Público.
Os empresários financiadores que bancam as despesas com os robôs que fazem as postagens automáticas nas redes também já foram identificados pela PF. O custo mensal das operações do núcleo está estimado em R$ 5 milhões. Além do financiamento de uma atividade ilegal, parece também haver evasão de divisas e sonegação. Bolsonaro sabe que quando os resultados do inquérito forem revelados, o estrago será grande. Ele tinha seus motivos para pedir a cabeça do diretor da PF.
Não é segredo para ninguém, a mídia já divulgou amplamente: o Gabinete do Ódio está estrategicamente instalado no terceiro andar do Palácio do Planalto, como denunciou em dezembro do ano passado a ex-fanática bolsonarista, deputada Joice Hasselmann, ex-lider do governo na Câmara. Ressentida com os ataques recebidos, ela botou o dedo na ferida em seu depoimento na CPMI: na Assessoria Especial da Presidência funciona o núcleo ideológico do bolsonarismo. Além de relatórios que fazem a cabeça do presidente, é de lá que partem os torpedos contra todos os que caem na antipatia do vereador Carlos Bolsonaro. É de lá que partem as intrusões aos multiplicadores das redes sociais e aos organizadores dos eventos de rua, como a recente manifestação contra o Legislativo e o Judiciário em Brasília.
Carlos identifica quem são os alvos, a equipe faz o resto. Embora resida no Rio, ele frequenta rotineiramente o gabinete do terceiro andar. Seu guru e inspirador ideológico é o controvertido Olavo de Carvalho, que Carlos já visitou algumas vezes. Muito provavelmente, a eficiente estrutura foi organizada conforme o modelo indicado por Steve Bannon, maquiavélico marqueteiro de Donald Trump. Carlos Bolsonaro esteve pessoalmente com ele durante a campanha, em companhia de Olavo de Carvalho.
O Gabinete do Ódio não é um núcleo ideológico apenas, atua agressivamente como uma milícia digital. Para isso, mantém uma sofisticada estrutura profissional que trabalha 24 horas por dia. De lá que partem os petardos contra todos que – segundo Carlos Bolsonaro e seus assessores – são empecilhos à hegemonia absoluta do bolsonarismo no governo. Recentemente uma escalada de notícias foi disparada contra Tereza Cristina, ministra da Agricultura, porque ela não gostou dos ataques à China, principal compradora de produtos agropecuários brasileiros. Ela atribuiu o ataque ao Gabinete do Ódio. O presidente do Senado Davi Alocumbre, e da Câmara Rodrigo Maia, ambos do DEM (partido de apoio ao governo), também são alvos constantes.
Conforme a mídia já divulgou, há três assessores especiais: Tercio Arnaud Soares, José Mateus Sales Gomes e Mateos Matos Diniz (este último está formalmente lotado na Secretaria de Imprensa). O chefe da Assessoria Especial de Bolsonaro Célio Faria Junior também participa das discussões e decisões. Além do assessor dele, Leonardo R. de Jesus, o Léo Índio, que zelosamente vigia a ‘infiltração de comunistas’ na hierarquia do governo.
Felipe Martins, assessor do deputado Eduardo Bolsonaro, costuma passar por lá e orientar ações. Duas profissionais estrategistas de ‘inteligência’ e comunicação digital da empresa AM4, que trabalharam na campanha eleitoral, faziam o trabalho executivo em posições subordinadas. Ambas foram afastadas no ano passado. A empresa é especializada em “posicionar marcas no ambiente digital e ajudá-las a atingir seus objetivos”. Em seu site oficial, a AM4 se idêntica como um lobo-guará: “enxergamos mais longe e temos a velocidade”.
A CPMI das Fake News do Congresso Nacional teve recentemente seu prazo prorrogado por mais seis meses. Seu presidente já disse que convocará o ex-ministro Sergio Moro para depor. O inquérito do STF corre em sigilo, e sua conclusão está prevista para o próximo mês de maio, quando deve ser enviado ao Ministério Público. A legalidade do inquérito foi questionada por ‘vício de origem’: partiu do próprio STF e não da Polícia Federal ou do Ministério Público, como de praxe. Mas a Polícia Federal já avançou muito nas investigações para voltar atrás.
A ex-Procuradora Geral da República Raquel Dodge pediu o arquivamento do inquérito, mas o atual procurador Augusto Aras mudou a estratégia, recomendou o andamento do inquérito e passou a ter acesso ao seu conteúdo. No final do ano passado o relator Ministro Alexandre de Moraes do STF adotou como estratégia desmembrar o inquérito enviando partes dele à Policia Federal a fim de colocá-lo no rito processual normal. Juízes e procuradores do Ministério Público que receberam inquéritos parciais, entretanto, mandaram arquivar os processos considerados ilegais.
Tudo caminhava para um impasse jurídico. Mas a intempestiva demissão do Ministro da Justiça Sergio Moro com o objetivo de proteger a ‘famiglia’ Bolsonaro recolocou o inquérito na ordem do dia. Precavendo-se com a troca na direção da PF, o Ministro Alexandre de Moraes já expediu ordem para que os delegados que tocam o inquérito sejam mantidos. A agressiva ação do presidente contra Moro deixa claro que a revelação do conteúdo das investigações será devastadora. Os inquéritos ganharam incontestável dimensão política. Quem são os milicianos digitais? Quem são os deputados que lhes dão apoio? Quem são os empresários financiadores? A opinião pública aguarda ansiosamente os resultados da investigações.
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