Ronald Vizzoni Garcia*
Os interessados em compreender crises políticas foram presenteados com o livro Operação impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato, da editora Todavia. O autor é o cientista político Fernando Limongi, uma referência nos estudos sobre as relações entre os poderes Executivo e Legislativo. A contribuição de Limongi traz rica exposição dos fatos da crise política e uma interpretação que reconstitui tais eventos minuciosamente. O livro, rapidamente, tornou-se um best seller. A repercussão do livro ainda não permitiu que se entenda que a contribuição vai muito além de reparações históricas.
Para começar, Fernando Limongi é cirúrgico ao desmontar as teses mais simplistas, tanto à direita, quanto à esquerda. A ideia de que o impeachment de 2016 foi consequência direta da inabilidade política de Dilma em negociar a manutenção de sua coalizão de apoio é refutada sem margem para dúvidas. Não localizará o ponto de inflexão da crise no cenário externo ou no elogio das forças de oposições. Tudo isso é parte da vida política e esperado. Para produzirem resultados de impacto, estes elementos precisam explorar fatores internos ao governo. O que requer explicação é como o governo perdeu apoio congressual. Afinal, com o cargo de presidente e os recursos de que dispõe, é relativamente fácil evitar desfechos trágicos.
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A longevidade da coalizão de partidos que sustentou os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) demonstra sua capacidade de unidade em meio a ameaças desde 2002. O autor lembra que os partidos que deixaram de apoiar Dilma receberam do governo Temer os mesmos ministérios oferecidos por Dilma para votar “não”. Estranho que uma aliança de longo prazo tenha sido desfeita em troca de praticamente nada na composição do novo governo Temer. Mais que isso, a obra narra como o governo Dilma saiu vitorioso em diferentes momentos de crise, capítulo a capítulo. No final, Limongi estabelece as condições que permitiram aos partidos da base de apoio optarem por um recurso que, segundo Fernando Henrique Cardoso, é como as ogivas nucleares: deveriam existir para não serem usadas.
A responsabilização de Dilma esconde que ela soube navegar entre os partidos da coalizão de governo e as correntes internas de seu partido. Na Petrobras, tomou atitudes ousadas, afastou diretores, nomeou Graça Foster, funcionária de carreira, e estabeleceu alianças com indicações para cargos da diretoria. Tal manejo permitiu lidar com as chantagens envolvendo seu nome no escândalo de Pasadena e o “volta Lula”. Sua desenvoltura política permitiu esvaziar a força política de Eduardo Cunha (presidente da Câmara) ao conduzir o grupo de Picciani (MDB-RJ) e importante aliado aos ministérios, como o da Saúde e da Ciência e Tecnologia. Dilma foi tudo, menos neófita. Os que reclamam imaginavam que poderiam curvá-la com facilidade. Impossível não constatar uma dose de misoginia lastreando a propagação dessa lenda argumentativa.
Isso não significa uma imagem de Dilma Rousseff imune a erros. Em boa medida, seu maior erro de cálculo, num olhar retrospectivo, foi aceitar a tese de João Santana de que deveria centrar no tema do “combate à corrupção”. As pesquisas apontavam uma imagem positiva de Dilma frente ao eleitorado. Outra contribuição de João Santana foi se orgulhar de ter achado o “queixo de vidro” de Marina Silva (Rede) na campanha presidencial de 2014: o apoio recebido de Neca Setúbal, herdeira do banco Itaú. O que se viu foi uma campanha agressiva, a desidratação de Marina e a ascensão de Aécio ao segundo turno. Figura política que abriria o precedente de questionar o resultado da eleição, até mesmo já sob o governo Temer.
PublicidadeO livro de Limongi é uma exposição sobre como entender o comportamento de personagens políticos (atores individuais e coletivos) diante de cenários político e institucional. Um conjunto de análises que ele rejeita, passeia pela via “não institucional” das manifestações de 2013, chegando aos movimentos de direita como MBL (Movimento Brasil Livre), Revoltados Online e Vem Pra Rua. Não se trata de negar a importância destes movimentos, mas relembrar que eles tiveram “picos” de mobilização e foram se esvaziando, independentemente da ânsia de seus organizadores de darem mais volume e ousadia as suas ações. Na verdade, estes movimentos não estavam nem estão fora do sistema político, mas conectados as suas disputas e lideranças tradicionais.
Teses simplificadoras à parte, qual a tese do livro? Os diferentes atores envolvidos não conseguiram medir o alcance das suas escolhas em relação aos demais. O governo Dilma recompôs seu leque de alianças e tentou puxar para si os benefícios da campanha contra a corrupção. Consequência: não ficou imune às novas operações da Lava Jato, na sua vertente de Curitiba. Os partidos políticos da coalizão governistas tentaram entregar o PT para celebrar um novo pacto “com o Supremo, com tudo”. Consequência: foram postos à deriva pela vertente de Brasília da Lava Jato, capitaneada por Rodrigo Janot. Entregar o governo do PT para salvar o sistema político não funcionou, pois não teria como englobar, prever e coordenar atores importantes. Foi uma aposta que deu errado.
O messianismo do lavajatismo foi sendo consumido pelas limitações das suas concepções e atuações “heterodoxas”. Eles diziam estar reformando de fora todo o sistema político, com apoio da sociedade e da mídia. No mundo real, escolhiam políticos para perseguir e outros para preservar, negociavam interesses pessoais e abusavam do poder dos cargos e das violações legais. Por fim, acabaram tragados à complacência com a pilha de absurdos do governo Bolsonaro. Expostos ao mundo político, revelam sua insignificância, moral, intelectual e biográfica.
De que elemento sofisticado ou fonte de pesquisa inédita se valeu o autor para validar suas contundentes conclusões? Pasmem: o noticiário, documentos, discursos e as análises disponíveis. Cem das trezentas e três páginas do livro são dedicadas a notas explicativas citando e comentando a cobertura que ampara suas análises. Este aspecto tem sido pouco analisando. Não basta a abundância de informação, se o olhar é torto e de autoconfirmação. Limongi questiona suas bases argumentativas, mede suas hipóteses, calibra seus argumentos, testa a realidade sob diferentes perspectivas. Oferece um livro para ser dissecado em minúcias por lideranças políticas, analistas e jornalistas. Uma aula em praça pública sobre o que nos falta nas leituras instantâneas de processos complexos.
* Ronald Vizzoni Garcia é sociólogo (UFRJ), doutor em Ciência Política (IUPERJ/UCAM) e coordenador do Curso de Extensão DH nos Municípios (UFRJ) (www.direitoshumanos.online).
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