Ane Siderman, Bárbara Cunha e outros *
Na última década, o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) passou por transformações significativas que moldaram o cenário da produção audiovisual no Brasil. As políticas desenhadas pelo fundo foram construídas com o objetivo de fomentar uma diversidade de obras, produtoras e modelos de negócio. Na última década, mudaram de rota, e, gradualmente, iniciou-se um processo de concentração que passou a beneficiar um grupo restrito de empresas, deixando de lado a pluralidade que antes era a premissa da política pública. À medida em que o fomento se concentrou, empresas produtoras que surgiram no período após 2013 vem questionando a equidade e a sustentabilidade deste modelo que começou a ser implementado a partir de 2018.
Ao nos debruçarmos sobre os números da Agência Nacional de Cinema (Ancine), constatamos que desde a criação do FSA, até o fim do ano de 2023, 1901 diferentes empresas tiveram acesso aos recursos de pelo menos um edital do fundo. Destas, 62 empresas são atualmente classificadas como nível 5, 138 empresas são nível 4 e 1701 são de nível 1, 2 e 3, ou não possuem classificação[1].
A política de fomento do FSA desenvolvida pela Ancine durante os governos Lula e Dilma criou um universo de editais de financiamento, sobretudo após a aprovação da Lei 12485/2011, que aumentou significativamente os recursos destinados ao fundo pela Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, a chamada Condecine. A implementação do Programa Brasil de Todas as Telas no Governo Dilma, a partir de 2013, permitiu o lançamento de uma série de editais que causaram uma verdadeira “reforma agrária” no latifúndio que era o audiovisual no Brasil, atuando por meio da diversificação dos investimentos: editais de desenvolvimento e núcleos criativos; os arranjos regionais; o edital específico de cinema para projetos de inovação de linguagem; os editais de distribuição e os editais em fluxo contínuo (no caso da TV, atendendo a demanda das cotas da TV por assinatura; e o no caso do cinema, incentivando a entrada de outros distribuidores no mercado).
Por mais que fossem numerosos, os editais criados nesse período permitiam aos novos produtores o desenvolvimento de modelos de negócios diversos. E ali surgiram produtoras com diferentes perfis: empresas focadas em documentários, estúdios de animação, produtoras de obras de gênero, empresas pautadas em cinema de autor (arthouse), dentre outras. Aqueles editais permitiam a tomada de caminhos diversos da concepção à distribuição de uma obra, passando sobretudo, pela produção.
O modelo não foi perfeito, ele falhou em aumentar o market share (participação de mercado) do cinema independente brasileiro, assim como também não conseguiu garantir a inclusão de minorias socialmente marginalizadas como mulheres, negros e indígenas. Ou seja, a “reforma agrária” iniciada em 2013 não resolveu o problema da equidade, mas fez com que, indiscutivelmente, a produção audiovisual deixasse de ser um negócio para poucos. E mostrou que era possível construir um mercado forte e rentável para o audiovisual brasileiro.
PublicidadeA mudança estrutural foi visível. Novas propriedades intelectuais para empresas brasileiras, filmes circulando pelos mais prestigiados festivais de cinema em todo o mundo, o boom de animações brasileiras, obras brasileiras independentes de qualidade indiscutível na TV. Na TV paga, os ares foram de revolução, com um aumento significativo na produção e na audiência das obras brasileiras. O audiovisual não era mais apenas o longa de ficção de alto orçamento. A dicotomia entre “comercial” e todo resto já não fazia mais sentido. Afinal, mesmo os pequenos produtores vendem sua produção, seja nas feiras das cidades do interior, seja nos grandes mercados locais – sem falar nos que exportam para o exterior!
Essa “reforma agrária” do setor caminhava para um desenvolvimento sustentável, uma espécie de “agricultura familiar” do audiovisual, em oposição a um modelo até então vigente pautado no “latifúndio”, com grandes concentrações (de “terras”).
A queda
O recuo das políticas públicas a partir de 2018 dinamitou o modelo que vinha permitindo esta “reforma agrária”. Entre corridas-malucas, ações judiciais e paralisações, a história foi escrita e muitos dos pequenos proprietários tiveram de vender o que restava de suas terras para sobreviver a este período.
Neste momento, o latifúndio prosperou com recursos públicos. Grandes empresas acessavam recursos públicos e utilizavam esses recursos para concentrarem ainda mais o setor. Ou seja, o Estado focou seus investimentos no latifúndio improdutivo e na monocultura. Improdutivo porque não levou a aumentos significativos no market share, pelo menos não no cinema. E monocultura, pois quase todo o investimento público do FSA se destinou a apenas um tipo de produto.
A dependência da monocultura aumenta o risco do setor produtivo estar mais suscetível a variáveis, como o clima e o aquecimento global, e as inevitáveis crises e oscilações do mercado externo. Ela foi priorizada, ao invés do investimento em inovação, e em um modelo auto-sustentável, diversificado e descentralizado – o que traria muito mais segurança, diminuiria riscos e aumentaria as chances do setor em navegar nas difíceis ondas da produção audiovisual contemporânea.
A vitória do projeto político eleito nas urnas em 2022 trouxe esperança no nome e foi exatamente este o sentimento que guiou a maior parte dos pequenos produtores. Assim como um agricultor que pelo canto do bem-te-vi sabe que vem chuva, e com a chuva, se planta, e se colhe, nós produtores e produtoras, esperamos pela chuva. A espera não cansa a seca que se abate sobre o Brasil em 2024. Os pequenos produtores audiovisuais seguem esperando pelas políticas públicas que poderiam trazer a retomada do setor.
Desde 2022, as regras dos editais do FSA permanecem praticamente as mesmas. Ao invés do desenvolvimento de um ecossistema complexo, plural e sustentável, que permite a coexistência de pequenos, médios e grandes produtores – como ocorreu em decorrência do desenho de editais de 2013 até 2017 -, a Ancine decidiu privilegiar um tipo de empresa – e por sua vez, um tipo de projeto, de formato e de gênero.
Nos editais do FSA, cujos resultados foram divulgados em 2023, primeiro ano do governo Lula 3, mais de 50% dos recursos foram destinados apenas a empresas de nível 4 e 5 – mais de R$360 milhões, de um total de quase R$700 milhões. Se é certo que os recursos públicos são escassos, o que justifica que mais de 50% seja investido em, no máximo, 224 empresas -, e pouco menos de 50% sejam destinados a todas as demais, que são, no mínimo, 1700[2]?
O modelo atual do FSA de latifúndio e monocultura é retrógrado e incompatível com a diversidade e com o desenvolvimento sustentável da cadeia produtiva. Ao privilegiar o sucesso comercial pregresso como principal parâmetro de classificação de projetos, ele promove uma competição injusta, já que coloca frente a frente projetos de perfis mercadológicos completamente distintos. Assim, mesmo empresas nível 4 e nível 5 não conseguem acessar o fundo, se não possuírem uma produção pautada na monocultura que a Ancine escolheu priorizar.
É justo utilizar como um mesmo parâmetro de sucesso a bilheteria de um longa de ficção de alto orçamento e a de um documentário? Como comparar o volume de produção de uma empresa de ficção, com o de um estúdio de animação, que demora muito mais tempo para produzir suas obras? Como considerar o sucesso comercial apenas a partir de números de público, ou de obras produzidas, sem levar em conta as despesas de comercialização investidas, o sucesso relativo entre investimento e retorno, ou se de fato houve lucro ou prejuízo naquele lançamento? E por fim, como deixar de fora deste cálculo a relevância social e artística de obras produzidas com recursos públicos?
Passados quase dois anos do governo Lula 3, não há nenhuma sinalização de entendimento dos desafios do setor, vinda do Comitê Gestor do FSA. A antiga divisão entre editais de concurso e suporte automático, que por tanto tempo permitiu a harmonia no funcionamento do FSA, acabou. Houve a automatização da maior parte dos concursos. Os poucos que restam que não são automáticos, inflaram. É oferecida a algumas produtoras a possibilidade de um plano de negócios, mas ao restante, resta uma verdadeira loteria.
Além disso, o tempo é um elemento chave para o planejamento do plantio e da colheita. Se perdemos a época de chuva, a semeadura não prospera e perde-se uma safra inteira. Muitas pequenas produtoras de audiovisual têm vivido uma situação de extrema insegurança, devido a essa estiagem que já dura pelo menos desde 2018. A ausência de uma política de fomento multifocal, que abranja uma maior diversidade de perfis de produção, tem forçado essas pequenas produtoras a recuar da proposição de projetos audiovisuais, descontinuando uma cinematografia próspera e empreendedora, relevante para a biosfera da cultura audiovisual independente brasileira.
O que precisamos neste momento é de união e reconstrução – e o governo federal necessita ter este olhar sobre o nosso setor. Desse modo, é necessário reconstruir as políticas de fomento do audiovisual e não aprofundar as desigualdades como faz o atual modelo. Ou será este governo o responsável por levar ao fim as pequenas empresas que ele mesmo incluiu no passado em sua “reforma agrária” do setor audiovisual?
* Assinam este artigo Ane Siderman diretora e produtora executiva audiovisual, sócia da SiderAll Cinema (RS) e diretora sul da Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro (API); Bárbara Cunha, cineasta e sócia da 99 Produções (PE) e diretora nordeste da API; Juliane Almeida, produtora da Jubalina Produções (TO) e diretora norte da API; Raquel Valadares, criadora, roteirista e produtora da Anima Lucis Produções (SP) e diretora sudeste da API; Tiago de Aragão, diretor e roteirista da Sal (DF) e diretor centro-oeste da API; Alexandre Mello, diretor, produtor e roteirista, sócio da Framme Produções (PI) e conselheiro nordeste da API; Gustavo Amora, produtor na Comova (DF), e conselheiro centro-oeste da API; Lícia Brancher, produtora da Contraponto (SC) e conselheira sul da API; Matheus Peçanha é produtor da Estúdio Giz (RJ), e conselheiro sudeste da API – Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro.
[1] Dados obtidos junto à Ancine relativos ao período de 2008 a 2023, no dia 16/04/2024, por meio do Despacho n.o 174-E/2024/SEF/SFO
[2] Dados obtidos junto à Ancine no dia 16/04/2024, por meio do Despacho n.o 174-E/2024/SEF/SFO e por meio do estudo realizado pela CONNE – Conexão Audiovisual Centro-Oeste Norte e Nordeste intitulado FSA 2023 – Resultados e Lições (2024).
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