Luís Fernando Veríssimo nos ensinou que “a principal matéria-prima para a crônica são as relações humanas. O modo como as pessoas se amam, se enganam, se aproximam ou se afastam num ambiente social definido. Ou qualquer outra coisa”. Seguindo a lógica do genial escritor gaúcho, escrever crônica seria uma tarefa extremamente fácil, mesmo porque as relações entre as pessoas são exercidas no modo automático, assim como é o pulsar do coração na manutenção da vida corpórea. Ama-se, engana-se, aproxima-se, afasta-se ou se faz alguma coisa a todo instante, queria-se ou não.
Esqueceu-se de dizer que para o cronista, especialmente aquele que tem a obrigação de escrever com regularidade, o problema está exatamente na fartura do material a ser escolhido como tema. Não é tarefa simples pinçar o assunto que, convertido em palavras amontoadas em único texto, possa servir de moldura narrativa dos fatos vividos em determinado lapso temporal. Ainda mais quando o hiato entre as crônicas produzidas é quinzenal e o período a ser abordado é fértil em acontecimentos que extrapolam qualquer raciocínio lógico.
Afinal, como dizer que não merece uma crônica a birra pública entre um presidente da República e um de seus mais íntimos ex-ministro, em que ambos, comprovadamente, acusam-se de mentirosos e chantagistas, ameaçando-se em diálogos reciprocamente gravados? Como dizer que é irrelevante o ministro da Educação, deseducada, ilegal e inconstitucionalmente, mandar gravar crianças em compulsória propaganda do mote da campanha eleitoral que o tornou encarregado de educar aqueles em que acusou serem filhos de “canibais”? Como não entender importante as redes sociais privadas interferirem nas escolhas e exonerações públicas, como admitiu o ministro da Justiça ao recuar na nomeação de uma suplente para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária? Como se recusar a escrever sobre o vídeo de conteúdo restrito postado pelo próprio presidente, em que acusa a maior festa popular brasileira de ser o “apogeu fetichista da chuva dourada”?
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Realmente é de extrema dificuldade trazer para esta coluna o assunto eleito como tema principal, até porque quase estivemos em guerra fratricida contra os hermanos venezuelanos, apenas para agradar os plantonistas que governam nos EUA. Neste mesmo período, os militares foram indicados guardiões-mor da democracia e o vice-presidente se tornou o mais abalizado intérprete do pensamento presidencial, o Itamaraty voltou-se para a cela escura das perseguições internas, a imprensa foi outra vez ameaçada e se tornou pública a nomenclatura “olavetes” para designar a posse privativa de vários cargos importantes no governo.
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Eleger o campo legislativo como assunto também é tarefa árdua, pois também nesta área reina a fertilidade de eventos à disposição do cronista regular. De logo, teria que se dedicar ao projeto que pretende retirar da Constituição Federal o instituto da aposentadora digna ou mesmo um dia alcançável para homens e mulheres. Teria que se dedicar ao projeto de lei que criminaliza os movimentos sociais e suaviza a vida dos que praticam caixa 2 e irrigam seus queridos laranjais. Em medidas ainda provisórias, não poderia deixar de registrar a assumida pretensão de se castrar as organizações não governamentais e matar por inanição financeira as entidades sindicais, salvo no que se refere ao Ministério Público Federal, que planeja criar uma esdrúxula fundação privada com o dinheiro público da empresa brasileira que se diz proteger contra ataques externos.
Entre trancos e barrancos, reconheço que preciso decidir o assunto que servirá de matéria-prima, sem correr o risco de ser tentado a plagiar o Barão de Itararé, quando nos contou que “este mês, em dia que não conseguimos confirmar, no ano 453 a.C., verificou-se terrível encontro entre os aguerridos exércitos da Beócia e de Creta”. Segundo relatam as crônicas, venceram os cretinos, que até agora se encontram no governo. Então escolho a Estação Primeira de Mangueira, para esclarecer que crônica quer “contar a história que a história não conta, avesso do mesmo lugar, pois é na luta é que a gente se encontra”.
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