Marina Pita* e Diogo Moyses**
O governo brasileiro não titubeou quando garantiu, via Medida Provisória 952/2020, a postergação do pagamento de tributos das empresas de telecomunicações. Um valor entre R$ 3 e R$ 4 bilhões deixou de ser recolhido em março porque, corretamente, considera-se que os serviços de telecomunicações são essenciais e não podem parar. As empresas prestadoras destes serviços merecem, então, alguma forma de apoio público, uma vez que passaram a enfrentar a crise econômica decorrente das medidas necessárias de isolamento para contenção da epidemia do novo Coronavírus no Brasil. Uma quebradeira generalizada no setor, por certo, não interessa a ninguém.
O argumento do governo, registrado na exposição de motivos nº 72/2020 MCTIC, que acompanha o texto da MP, argumenta que “com o declínio da atividade econômica [em face dos efeitos da diminuição da circulação econômica provocada pela pandemia de covid-19], espera-se um aumento da inadimplência no setor [telecomunicações], o que prejudicará o fluxo de caixa das operadoras num momento em que a conectividade faz-se ainda mais relevante para os cidadãos”.
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A demanda é justa, mas falta uma peça fundamental: o cidadão, que tem passado longe das preocupações governamentais e, em função da crise, tem sofrido para manter o acesso a serviços essenciais – como é o caso das telecomunicações, conforme reconheceu inclusive o Decreto nº 10.282/2020 -, uma vez que boa parte dos brasileiros ficou sem renda durante a pandemia, algo que os números oficiais já captaram.
O segundo trimestre de 2020 registrou recorde negativo (- 9,6%) no número de pessoas ocupadas no Brasil, de acordo com levantamento do IBGE. No total, 8,9 milhões de pessoas perderam seus postos de trabalho de abril a junho, em relação ao período de janeiro a março. Com isso, a população ocupada ficou em 83,3 milhões, o menor nível da série histórica. Na comparação com o mesmo período de 2019, a queda foi de 10,7%.
PublicidadeFoi nesse cenário, ainda no início do isolamento, que Intervozes e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) foram à Anatel exigir medidas de apoio aos consumidores mais vulneráveis. O Intervozes protocolou pedido para que, em caráter liminar, a agência proibisse, por 90 dias, a suspensão de serviços ou a cobrança de excedente caso sejam ultrapassados os limites de franquia, mas a Anatel concluiu que não seria o caso de forçar as empresas a garantirem conexão. Em vez disso, optou por pedir a elas que tomassem medidas, por meio de “compromissos”, para garantir a continuidade dos serviços neste momento excepcional. Contudo, também nesta frente o resultado foi altamente insuficiente, como demonstra relatório do Idec enviado à agência e ao então MCTIC.
Agora, a Câmara dos Deputados, ao optar por não analisar e discutir a MP 952/2020, também se omite em relação à necessidade de garantir a conectividade dos cidadãos durante os momentos mais agudos da crise. A mesma Casa que votou a liberação da telemedicina, sob o argumento de facilitar o acesso aos profissionais de saúde no contexto da pandemia, tinha a oportunidade de exigir contrapartidas às empresas beneficiadas pela prorrogação de pagamento de tributos de forma a assegurar a conexão dos usuários. Uma delas, a mais óbvia, seria estender aos consumidores a possibilidade de parcelamento do pagamento dos serviços em caso de inadimplência, com os mesmos juros prometidos às empresas, pelo mesmo período em que elas fizessem o parcelamento dos tributos devidos à União. Havia inúmeras emendas de plenário propostas neste sentido. O raciocínio é simples: se as operadoras podem negociar o pagamento de tributos bilionários à União, os consumidores devem ter o direito de parcelar seus débitos com as operadoras. Foi justamente isso o que fizeram inúmeros países.
Ainda, havia disposição inicial do relator, André Figueiredo (PDT-CE), de alterar a Lei do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Lei do FUST) e a Lei Geral de Telecomunicações (LGT) para permitir a aplicação destes recursos na expansão da infraestrutura que suporta a conexão à Internet. Não se poderia esperar milagres imediatos de universalização do acesso à Internet no país, mas avançaria no sentido da construção de uma política pública sustentável e de longo prazo para assegurar o direito de acesso a internet a todos, objetivo que deve orientar a disciplina da Internet no Brasil, de acordo com o Marco Civil da Internet.
A essencialidade do acesso à Internet ficou mais evidente nos últimos meses, principalmente em face à necessidade de isolamento social. Hoje, é possível afirmar de forma inequívoca que o acesso às telecomunicações é essencial para garantir o trabalho de milhares de pessoas que estão em home office, o acesso a ferramentas de Educação a Distância (EaD) – por exemplo, como forma de garantir o estudo para o Enem e viabilizar o Enem Digital 2020 – e para garantir a comunicação de pessoas que estão longe de suas famílias, bem como para promover lazer e cultura para quem não pode sair de casa. Trata-se, de forma evidente, de um serviço que deve ser considerado essencial, sem o qual a dignidade dos consumidores é fortemente comprometida. Tapar os olhos para essa situação significa compactuar com o aprofundamento das desigualdades em nosso país.
No entanto, mesmo uma proposta bastante favorável às empresas de telecomunicações e com possibilidade de apoiar a conexão das famílias cadastradas no Bolsa Família, apresentada pelo relator, foi descartada sem apreciação dos parlamentares. A proposta consistia na troca de uma oferta de R$ 5 de crédito em serviço móvel aos mais vulneráveis, as empresas ganhassem, em troca, R$ 15 em crédito tributário (também destinados aos usuários) – ou seja, reduziriam o montante de recursos a serem pagos, se assim desejassem, oferecendo algo que em nada – ou quase nada – onera suas operações. Nem isso as fez apoiar a análise da matéria.
Foi mais uma oportunidade perdida para o avanço das políticas de garantia de direitos e cidadania por meio desse serviço essencial que é a Internet. E desta vez, infelizmente, com a omissão dos parlamentares brasileiros.
*Marina Pita é coordenadora executiva do Intervozes e integra o Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações da Anatel
**Diogo Moyses é coordenador do programa de telecomunicações do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC)
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