Marcelo Viana Estevão de Moraes *
Nos últimos oito anos, a maior parte das vacâncias ocorridas nos cargos de servidores públicos efetivos do quadro de pessoal permanente dos cerca de 200 órgãos e entidades que integram o Poder Executivo Federal não foram supridas por meio de concursos públicos regulares. Isso representa grave risco para a prestação de serviços e a preservação da memória institucional da administração federal direta, autárquica e fundacional. Para além de supostas restrições fiscais, o quadro foi agravado substancialmente com a decisão de desmonte de políticas públicas federais durante a gestão Bolsonaro.
Segundo o Observatório de Pessoal, do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviço Público (MGI), entre 2018 e abril de 2023, o quantitativo de servidores ativos do Executivo passou de cerca de 630 mil para 555 mil: uma redução de 75 mil servidores. Entretanto, essa queda pode ser bem maior, uma vez que a metodologia adotada pelo Observatório agrega de modo equivocado categorias funcionalmente distintas de servidores – regime jurídico único (RJU), temporários, celetistas e até profissionais em residência médica. A maciça contratação temporária feita pelo IBGE para realizar especificamente o censo demográfico infla os números atuais e os distorce. Autoridades do próprio MGI estimam em cerca de 100 mil os cargos de servidores efetivos que vagaram por motivos diversos no período mencionado.
O novo governo conseguiu autorizar até agora a realização de concurso para apenas 5.880 vagas permanentes, ou seja, cerca de 6% das vacâncias referidas. Considerando o ciclo médio para operacionalização dos certames e nomeação dos aprovados, dificilmente haverá ingressos ainda neste exercício. A carência de recursos humanos representa uma ameaça real para o atual governo. Esse ritmo lento deriva da adoção de um procedimento administrativo em que a autorização é dada caso a caso, negando a natureza geral do problema e ignorando que os órgãos e entidades possuem quadros de lotação ideal que expressam, em princípio, o quantitativo da força de trabalho requerida para o cumprimento de suas missões institucionais.
Boa parte da demanda de pessoal do governo foi suprida no período recente pelo recurso à terceirização e pela contratação temporária, mas há limites legais para adoção dessas alternativas. Situações tidas no passado como terceirização irregular, que ensejavam ajustes de conduta, foram regularizadas com o advento do Decreto nº 9.507/2018. A Portaria nº 443/2018 estabeleceu a lista de serviços a serem preferencialmente executados de modo indireto. Para contratar terceiros, os órgãos e entidades do governo federal não dependem de autorização prévia: basta que tenham dotação orçamentária específica para a incorporação quase imediata de força de trabalho adicional. Para enfrentar os gargalos de pessoal, e quando possível, os dirigentes públicos mais diligentes, para evitar futura responsabilização administrativa, terceirizaram todas as atividades permitidas e alocaram os poucos servidores titulares de cargos efetivos remanescentes naquelas funções que são privativas destes, evitando descontinuidade administrativa. Mas em muitos casos há riscos para os gestores e prejuízo para o público com a ocorrência de desvios de função.
Cabe salientar que não há um problema fiscal intrínseco à despesa total com pessoal federal, que é hoje a menor da série histórica desde a estabilização monetária dos anos 90, em termos de participação no PIB: 3,68% (valor orçado) e 3,63% (valor empenhado) do PIB em 2022. O quantitativo de servidores efetivos ativos do executivo federal (RJU) é hoje de cerca de 490 mil, o que equivale ao patamar de 2002, o mais baixo desde a promulgação da Constituição de 1988. O risco fiscal não está na folha de pessoal, sob controle, mas no impacto da atual política monetária.
PublicidadeAssim como o reajuste geral da remuneração do funcionalismo, o problema das vacâncias também deve ser enfrentado no atacado, mediante a adoção de uma estratégia global emergencial, até porque qualquer decisão adotada hoje somente produzirá resultados práticos sobre a recomposição da força de trabalho, em uma perspectiva otimista, a partir do segundo semestre de 2024.
A consecução dessa estratégia demanda a alteração da lei orçamentária (Anexo V), por meio de projeto de lei, e a aprovação pelo Presidente da República de uma exposição de motivos que autorize excepcionalmente a realização de concursos para que os órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional possam prover as vacâncias ocorridas a partir de determinada data, sem necessidade de alterar, por ora, o procedimento burocrático vigente, que seria revisto mais adiante.
O impacto fiscal real dessa autorização no corrente exercício será de fato nulo, pois não há mais tempo hábil para que haja a nomeação de aprovados no ano em curso. Já o impacto orçamentário nos próximos exercícios poderá ser administrado, conforme as disponibilidades fiscais, por meio das autorizações para nomeação dentro dos prazos de vigência dos certames. Idealmente deveria ser provida a totalidade dos cargos vagos a partir de janeiro de 2019, para sanar o legado maldito, mas é evidente que o ritmo deve ser graduado pela gestão fiscal.
O novo governo tem legitimidade para adotar essa estratégia pois já evidenciou seu compromisso com a responsabilidade fiscal ao propor o novo arcabouço, ao não recompor de imediato todas as perdas inflacionárias do funcionalismo e ao reestruturar seu organograma, criando ministérios sem a expansão dos quantitativos unitários de cargos e funções comissionadas. A autorização de concurso não expande a administração mediante criação de cargos, mas tão somente supre as vacâncias ocorridas na força de trabalho previamente dimensionada.
A conjugação de responsabilidade fiscal com gestão eficaz de pessoal demanda sincronia, para que haja concursado apto para nomeação quando o espaço fiscal se apresentar, ainda que não advenha a hipótese otimista de previsível alteração da política monetária ultra contracionista e de melhoria do desempenho econômico. O resultado almejado é modesto: o de tão somente voltar à situação anterior à catástrofe bolsonarista.
Ultrapassado o atual contexto emergencial, uma estratégia permanente e estruturante de longo prazo para a questão dos concursos demandará a adoção de metodologias adequadas de dimensionamento da força de trabalho que considerem os impactos dos avanços tecnológicos na alocação de pessoal. Revistos assim os quadros de lotação ideal, e extintos os cargos eventualmente excedentes, órgãos e entidades devem ter autonomia para a realização dos certames no limite de suas disponibilidades orçamentárias. Se o Ministério da Gestão quiser ser o da “Inovação”, como se propõe em sua sigla, terá que enfrentar a tradição cartorial nesse tema e em outros correlatos, contribuindo de modo inteligente com a força do exemplo para a simplificação administrativa.
* Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, pesquisador do Centro de Estudos Avançados de Governo e Administração – CEAG/UnB, doutor em ciência sociais pela PUC-Rio com pós-doutorado no IPOL/UnB, autor do livro A Construção da América do Sul: o Brasil e a Unasul (Appris, 2021). Foi Secretário de Gestão (2008/2010) e Secretário de Previdência Social (1994/1999) no governo federal.
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