Desde o início de seu mandato, o presidente Lula enfrentou na Câmara dos Deputados um ambiente mais desafiador do que no Senado. No entanto, esse cenário pode se inverter a partir do próximo sábado (1º), com a substituição de Arthur Lira (PP-AL) por Hugo Motta (Republicanos-PB), na presidência da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (PSD-MG) por Davi Alcolumbre (União-AP) no Senado. A avaliação é da cientista política Joyce Luz, pesquisadora da FGV e professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP), em entrevista ao Congresso em Foco.
Para Joyce, a ascensão de Alcolumbre ao Senado pode complicar a relação do governo com a Casa. “O União Brasil, de Davi Alcolumbre, está mais distante dos partidos de centro-esquerda. O diálogo com o Executivo vai exigir um desgaste maior. Caso faça novas indicações para o STF e outros cargos que precisam passar pelo Senado, Lula precisará de diálogo maior com Alcolumbre”, explica. Apesar disso, ela não acredita que o novo presidente do Senado altere regras regimentais, como ocorreu na gestão de Arthur Lira na Câmara. Lideranças nacionais do União Brasil, como o governador Ronaldo Caiado (GO) e o ex-prefeito de Salvador ACM Neto são inimigos históricos do PT e refratários a qualquer aproximação com Lula.
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Legado de Lira
Joyce destaca que a presidência da Câmara ganhou protagonismo nos últimos anos devido a mudanças estruturais e estratégias políticas que concentraram poder na figura do presidente. Esse processo teve início com Eduardo Cunha, durante o impeachment de Dilma Rousseff, e se consolidou com Arthur Lira, principalmente durante a pandemia.
Segundo a pesquisadora, Lira reforçou seu controle ao reinterpretar regras internas, esvaziar o papel das comissões e líderes partidários (com a criação de grupos de trabalho paralelos) e concentrar a definição da pauta legislativa em suas mãos. Além disso, iniciativas como a retenção de medidas provisórias (MPs) e a redução da transparência no processo decisório fortaleceram seu poder.
Essa centralização, segundo Joyce, prejudica a democracia ao enfraquecer a coordenação partidária e favorecer negociações suprapartidárias, como as lideradas pelo Centrão — grupo associado a Lira, conhecido por sua influência em trocas de emendas parlamentares e cargos públicos. “O Congresso atual é majoritariamente de centro-direita, enquanto o Executivo é de centro-esquerda. As pautas estão muito distantes, e Lula não consegue aproximar-se de uma maioria legislativa com posicionamentos divergentes”, afirma.
Apesar da troca na presidência da Câmara, Joyce avalia que Hugo Motta promoverá apenas ajustes pontuais nas regras. “Não há mais como a Casa retroceder em seu poder. Os parlamentares estão acostumados a benefícios, como as emendas, e não há espaço para retrocessos nessa área”, ressalta. “Por muito tempo a gente teve uma maioria legislativa idêntica ou muito próxima do governo. Lula não consegue aproximar o governo dessa maioria legislativa, que tem posicionamentos diferentes”, afirma. “Os parlamentares estão acostumados a desfrutar do bom e do melhor. Na questão das emendas, não dá mais para voltar atrás”, acrescenta.
Davi Alcolumbre e Hugo Motta concorrem com o apoio do PT e do governo. O senador votou em 84% das vezes com o governo; já o deputado, 84%, segundo dados do Radar do Congresso.
Leia a entrevista completa com Joyce Luz:
Por que a presidência da Câmara ganhou tanta importância e tanto poder nos últimos anos?
A presidência da Câmara dos Deputados e as lideranças partidárias sempre foram cargos muito importantes. Talvez a gente não notasse tanto o cargo de presidente da Câmara por não haver atritos com o Executivo. Tanto no governo FHC quanto nos dois primeiros governos Lula, o presidente da Câmara e os líderes tinham bom relacionamento com o Executivo. No cálculo da formação de uma coalizão, o presidente da República considera importante ter proximidade com esses cargos. Esse movimento de maior poder da Câmara vem desde a gestão de Eduardo Cunha, com o pedido de impeachment da presidente Dilma. Começou ali um movimento em que o presidente da Câmara chama para si algumas atribuições e responsabilidades que a gente não via antes. Refiro-me principalmente ao papel de articular os parlamentares dentro da Casa.
Quando isso começou?
Com Eduardo Cunha, vimos o movimento de se construir uma maioria legislativa independente da maioria do governo, que são diferentes. Na gestão de Arthur Lira, com a pandemia, isso toma proporções ainda maiores e acaba sendo consolidado esse poder do presidente da Câmara. Naquele período, tivemos a abertura de brechas no Regimento Interno, com o propósito de fazer a pauta legislativa andar com a urgência necessária que o momento exigia. Lira conseguiu manter isso após a pandemia, fazendo uso da interpretação e reinterpretando as regras a seu favor. A gente não volta ao status-quo anterior à pandemia. Há um atributo muito pessoal dele, que é o de ser um excelente articulador. Ele usa dessa qualidade dele para consolidar mudanças que deveriam ter sido deixadas para trás, como as sessões virtuais e o fim dos intervalos para que determinadas propostas possam ser votadas, além da criação recorrente de grupos de trabalho.
Quem perde mais com isso?
Os movimentos feitos por Lira desde o início da gestão tiveram outra consequência: o enfraquecimento do papel das lideranças partidárias. Quando ele começa a criar com frequência os grupos de trabalho, a gente vê o líder partidário perder visibilidade e importância. Cabe ao líder escolher os integrantes do seu partido nas comissões. A partir do momento em que se criam GTs para discutir a legislação, o poder da comissão é enfraquecido. Consequentemente, o poder do líder também se enfraquece, porque o presidente da Câmara passa a escolher a dedo, sem regras, quem vai compor esses grupos. Ou seja, o presidente da Câmara escolhe quem vai interferir ou não em determinada legislação. Há uma concentração de poder nas mãos dele e o esvaziamento dos líderes partidários.
Que prejuízo isso traz para a democracia?
A Mesa Diretora, junto com o Colégio de Líderes, era quem definia as pautas que seriam votadas durante a semana. Havia reuniões junto com a presidência da Casa para definir as pautas. Lira suspendeu essas reuniões. Quem passa a tomar decisão sobre o que vai ser votado ou não é o presidente da Câmara. Ele pode até negociar com os parlamentares, com grupos dentro da Câmara. Isso é prejudicial para os líderes e para a transparência. Desde que Lira assumiu, a Câmara não publica mais a agenda semanal do que vai ser votado. Muitas vezes sabemos o que será votado no dia, quando a votação está para acontecer. Falta transparência. O esvaziamento do papel do líder partidário enfraquece a coordenação partidária e favorece a negociação com grupos suprapartidários, que podem ser parlamentares ou o próprio Centrão.
Hugo Motta já sinalizou que pretende botar fim nas reuniões virtuais, ele quer que os parlamentares se comprometam a estar em plenário. Ele conseguirá fazer mudanças no funcionamento da Casa?
Isso depende de alguns fatores. Depende do quanto ele vai ser bom negociador. Não posso aqui tirar a maior virtude do Lira, que é ser bom negociador. Não sei se o Hugo Motta terá o mesmo jogo de cintura. Vai depender do quanto ele vai conseguir dialogar com os parlamentares. O comando do Lira passa pela articulação o Centrão. Hugo Motta vai alterar as regras para tirar benefícios do Centrão? Vai depender do quanto os parlamentares estão dispostos a voltar o status-quo, com regras que talvez não os favoreçam. Como vão reagir às alterações que ele vai fazer. Vai ser difícil reverter em relação aos intervalos das sessões e à criação dos grupos de trabalho. Acredito que isso vai permanecer. Também acredito que dificilmente será revertida a prática dos grupos de trabalho. Talvez Hugo Motta consiga voltar como era antes, com a realização das reuniões com o Colégio de Líderes e o fim das sessões online. Quando falamos de maioria legislativa, estamos falando do Centrão e de outros grupos suprapartidários, como frentes parlamentares poderosas, como as bancadas ruralista e evangélica.
E no caso das emendas parlamentares, que são objeto de discussão no Supremo Tribunal Federal, a senhora vê alguma chance de o Congresso recuar?
Os parlamentares estão acostumados a desfrutar do bom e do melhor. Na questão das emendas, não dá mais para voltar atrás. O Legislativo passou os últimos seis anos acostumado a receber recursos. Dificilmente a Câmara vai abrir mão disso, porque as emendas são importantes para garantir a sobrevivência eleitoral dos deputados. Mexer com a liberação de recursos para os parlamentares é sempre mexer em um vespeiro. Talvez Hugo Motta possa ter diálogo maior com a Presidência da República para negociar. Hugo Motta é uma figura que, diferentemente de Lira, demonstra ter mais disponibilidade para o diálogo. Manter aberta a porta do bom diálogo com o Executivo é vantajoso para ele. Em princípio, a relação com o Executivo tende a melhorar.
No Senado, com a volta de Davi Alcolumbre à presidência, o governo deve ter mais dificuldades?
Os senadores, diferentemente dos deputados, que têm um vínculo maior com localidades específicas, precisam ser bem votados no estado como um todo. Com eles, não há tanta essa disputa por recursos. Talvez haja agravamento da relação do Senado com o Executivo. O partido que vai assumir agora, o União Brasil, de Davi Alcolumbre, está mais distante dos partidos de centro-esquerda. O diálogo com o Executivo vai exigir um desgaste maior. Caso faça novas indicações para o STF e outros cargos que precisam passar pelo Senado, Lula precisará de diálogo maior com Alcolumbre. Frente ao Executivo, o Senado tem essa vantagem. Vejo Alcolumbre mais distante do Executivo do que o atual presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Mas, em termos de alteração das regras da Casa, acredito que o Senado não vá alterar nenhuma regra. Não vimos criação de regras informais como na Câmara. Lira e Pacheco não chegaram a um acordo sobre a tramitação das medidas provisórias. Lira não quis ceder espaço para o Senado. Talvez agora possa haver algum consenso porque o União Brasil e o Republicanos parecem mais próximos. Isso é favorável ao governo.
O Congresso mais forte é decorrência de governo fraco, como o de Jair Bolsonaro?
O Congresso ainda sofre consequências do governo Bolsonaro, mas não é uma consequência de algo feito fora da lei, que o Legislativo começou a usurpar de poder que não era dele. A partir de momento em que Bolsonaro não quis formar uma coalizão, ele decidiu que não ia governar com esse grupo. Somado a esse fator, Jair Bolsonaro não era um presidente que tinha muita proposta de agenda política. Quem tocou a pauta no governo dele foi o Legislativo. Na ausência do governo, o Legislativo chamou para si essa responsabilidade. Aí o Legislativo se fortaleceu. O governo Lula tem uma agenda legislativa, mas temos um Legislativo que não está disposto a dividir poder com o Executivo. Temos um alinhamento ideológico muito distante. Temos um Congresso majoritariamente de centro-direita e um Executivo de centro-esquerda. As pautas hoje estão muito distantes. Por muito tempo a gente teve uma maioria legislativa idêntica ou muito próxima do governo. Lula não consegue aproximar o governo dessa maioria legislativa, que tem posicionamentos diferentes.