Após um 2023 marcado por cabos de guerra entre o Congresso e o Planalto, a expectativa é de que 2024 seja marcado por uma relação mais amena entre os dois Poderes. Essa é a avaliação do analista e consultor político Antonio Augusto de Queiroz, que projeta um ano menos combativo em razão dos anseios do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em ser candidato ao governo de Minas Gerais e da tentativa de Arthur Lira (PP-AL) de se acomodar como ministro no governo Lula após deixar o comando da Câmara.
Ele acredita também que o governo dependerá menos do Congresso em 2024. Na avaliação do ex-diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o clima deve ser amenizado pela necessidade de Lira de se aproximar do governo até o início de 2025, quando acaba o seu mandato de presidente da Casa, para se fortalecer politicamente.
Assista a trecho da entrevista em vídeo e leia a íntegra mais abaixo:
“Se não tiver do lado do governo, vai ter sobre ele uma pressão muito grande dos dois senadores de Alagoas, os Renans [Calheiros e Filho, que atualmente chefia a pasta de Transportes], e também do governador [Paulo Dantas], que são adversários políticos dele”, considera Antonio Augusto, que também é jornalista, mestre em Políticas Públicas e Governo (FGV) e colunista do Congresso em Foco.
O analista considera que Lira deverá conter o “estilo autocrata e difícil no relacionamento com os demais parlamentares” se quiser permanecer como figura fundamental da política brasileira. “Então, a tendência dele é moderar o seu apetite, a pressão sobre o governo, para que tenha condições de entrar para o governo assumindo algum ministério, para que tenha sobrevida política até a eleição de 2026”, avalia. Lira protagonizou diversos embates com o governo, condicionando aprovações de propostas à execução de emendas parlamentares e ao preenchimento de cargos públicos federais por aliados políticos.
Publicidade“De bem” com Lula
Os presidentes das duas Casas foram reeleitos no início de 2023, ou seja, não poderão concorrer à presidência da Câmara e do Senado. Antonio Augusto acredita que, assim como Lira, Rodrigo Pacheco deve adotar uma postura menos combativa em relação ao Executivo, tendo em vista o próprio futuro político. Embora não assuma publicamente, Pacheco ambiciona ser governador de Minas. Para isso, espera contar com o apoio do PT no estado. O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, é um dos principais aliados políticos do senador.
“E o Pacheco, ao que se sabe, deseja concorrer ao governo do estado de Minas Gerais. Então, ele vai buscar uma postura de equilíbrio com algumas ações que sinalizem para o eleitorado conservador, ou ligado ao eleitorado mineiro”, acredita o analista político. “Um desses exemplos foi aquela votação da PEC em relação à limitação dos poderes do Supremo, e fará outro gesto para essa base mais conservadora para se viabilizar como candidato a governador.”
Além de acenar para o eleitorado conservador do estado, outro ponto fundamental para Pacheco, segundo Antonio Augusto, é estar “de bem” com o governo. “Ele não terá chance de se eleger se não tiver o apoio e a bênção do governo federal. E é por isso que ele vai ficar numa postura de equilíbrio. Vai dar duas pro governo e uma para oposição, ou para esses setores mais conservadores. Com isso, ele consegue dar governança no Senado e consegue penetrar no eleitorado mineiro sem a pecha de que se aliou integralmente ou 100% a um governo mais à esquerda”.
Evangélicos e agro
Nesta entrevista exclusiva, Antonio Augusto aponta erros e acertos do governo Lula em 2023 e faz um alerta para o presidente: é preciso se reaproximar dos evangélicos e do agronegócio – dois segmentos fortemente ligados a Jair Bolsonaro – para avançar sobre o eleitorado que não votou nele em 2022. Um cuidado que deve levar em conta, ressalta o analista, já as eleições de 2024.
“A tática do presidente tem que ser coerente com o seu discurso de união e reconstrução. Assim deve cultivar ao máximo a relação com as forças que o apoiam e sempre na perspectiva de cumprir o seu programa de governo. O erro a ser evitado é o isolamento político, especialmente perante o agronegócio e os evangélicos, que ainda o rejeitam muito. Do enfrentamento aos excessos do bolsonarismo devem cuidar a Justiça e os partidos de esquerda, especialmente o PT. O partido, por sua vez, não pode deixar de lançar candidato próprio ou fazer aliança no campo da esquerda, centro-esquerda e centro, só compondo com setores de sua base a direita onde não tiver a menor chance de disputar e mesmo assim mediante um acordo de não agressão ao governo. Tem que fazer o contraponto às forças de direita e extrema direita.”
Leia a íntegra da entrevista:
Congresso em Foco – O presidente Lula começou o terceiro mandato com um Congresso mais conservador e poderoso do que os que ele encontrou em seus governos anteriores. O país também está muito mais dividido. A vitória dele se deu por vantagem de menos de dois pontos percentuais. Como você avalia esse primeiro ano de relação entre o atual Congresso e o governo Lula?
Antonio Augusto de Queiroz – De fato, é a primeira vez no período pós 64 que um presidente com a estatura do presidente Lula, que tem experiência administrativa, experiência política, já governou este país em dois mandatos antes, encontra um Congresso muito hostil à sua pauta, mas que o governo consegue dialogar com esse Congresso hostil, buscando viabilizar aquelas pautas de interesse do país. Com governos fracos, o Congresso tende a avançar sobre o orçamento e sobre os recursos do fundo eleitoral e partidário. E foi exatamente o que aconteceu a partir do segundo governo Dilma. Vieram no primeiro momento as emendas individuais impositivas. No governo Temer, se deu o caráter impositivo a um percentual das emendas coletivas e no governo Bolsonaro se criou o orçamento secreto. Chega o presidente Lula no Congresso e abre mão dessas garantias, dessas vantagens, esses privilégios. E então o governo, com muita habilidade, consegue, numa articulação com o Supremo, que o orçamento secreto seja declarado inconstitucional e faz uma composição do Parlamento destinando metade do valor. O que anteriormente era o orçamento secreto virou orçamento transparente de posse dos parlamentares e a outra metade acabou ficando com o governo federal para as suas políticas públicas prioritárias. Então, se a gente se considerar esse ambiente hostil… Na verdade, a população elegeu o presidente, com a visão de mundo e o Congresso, com uma visão de mundo completamente oposta. Mas esse presidente tem uma capacidade de liderança muito grande – e a agenda do Poder Executivo tem um peso muito grande – e conseguiu fazer com que se aprovasse no Congresso matérias muito relevantes. Então, usando a analogia do copo quase cheio ou quase vazio, eu acho que o presidente Lula saiu com o copo quase cheio.
Mas a que custo? Quer dizer, de que modo isso pode comprometer os próximos anos da gestão do presidente Lula?
Acho que o custo foi relativamente baixo, se considerarmos que ele devolveu para o Parlamento apenas parte daquilo que o Parlamento já tinha. Ou seja, as emendas impositivas e parte daquele orçamento secreto. Então, eu posso dizer com segurança que ficou menos caro do que no governo Bolsonaro, que dava integralmente o orçamento secreto. E com a diferença de que esses recursos foram canalizados com políticas da maior importância. Entre as quais, o aumento real do salário mínimo. Portanto, com a recuperação do poder de compra da base da pirâmide social do país, de um lado, e de outro, com o fortalecimento dos diversos programas sociais de investimento em cultura. De modo que, além de ter economizado, as políticas públicas que extraiu do Congresso a partir dessas negociações, resultaram em benefício para aqueles que mais necessitam do Estado brasileiro.
O ano também mostrou a força que os presidentes da Câmara e do Senado possuem hoje. Esse modelo é irreversível? Até que ponto isso nós estamos caminhando para um certo semipresidencialismo, como alguns falam?
Se for mantida essa polarização existente, a tendência é, enquanto não houver uma reforma eleitoral e partidária que torne o voto um partido de pessoas, portanto ideias e não indivíduos., essa dicotomia, essa diferença entre parlamento e Executivo tende a continuar, especialmente no ambiente polarizado como o atual. O que aconteceu, na verdade, é o seguinte: o presidente Lula foi eleito com um Congresso com a renovação mais baixa que já houve nos últimos tempos, com os principais líderes reconduzidos não apenas para o mandato, mas para a liderança do partido e a presidência das Casas. Tanto que, se você verificar, os presidentes da Câmara e do Senado do Lula são os mesmos do governo Bolsonaro. De modo que o orçamento secreto, oculto, aquelas situações muito complexas e limitadas para o governo e ainda mais, que tinha que rever políticas públicas que aquele Congresso aprovou, é muito constrangedor o parlamentar ter que desfazer o que fez há menos de dois anos. E era esse o programa do Lula. Agora tinha que ter muita habilidade, muita capacidade, negociação, muita capacidade de persuasão. E tem uma máxima em política segundo a qual, quando o Congresso tem pauta própria, afastada ou diferente do Executivo, o Executivo tem duas condições: ou concorda ou obedece. E o Lula optou por uma terceira, que foi liderar um processo de negociação capaz de fazer concessões em outros pontos, sem abrir mão do conteúdo da política pública. Foi um feito e tanto. Se nós verificarmos até mesmo pautas que não fariam sentido com o atual Congresso, considerando que é um Congresso extremamente conservador do ponto de vista do comportamento, dos valores, não caberia, por exemplo, a Lei das Cotas, o aumento real para o salário mínimo, a igualdade salarial entre homens e mulheres. O Congresso, com essas características, não costuma fazer esse tipo de aprovar esse tipo de política pública. E no fim, para fechar o quadro, aprovou-se uma reforma tributária que há 40 anos se lutava por isso. E o governo teve sempre a habilidade de não trazer para o campo do debate político ideológico, mas do interesse do país. Procurou colocar a reforma tributária como a reforma do interesse do Estado e não especificamente do governo.
O Congresso aprovou um orçamento com um montante recorde de emendas parlamentares, e quase a totalidade delas aí com caráter impositivo, com um cronograma para a liberação dessas emendas. O que muda no jogo político para o próximo ano, a partir desse descontrole maior do governo sobre o orçamento?
Hoje há diferença de uma emenda parlamentar e uma iniciativa do governo a partir de um programa de governo. É que a emenda do parlamentar, em tese, é elaborada sem a necessidade de validação de projetos, ou o governo pode eventualmente atrasar o desembolso, mas ele não pode atrasar o empenho. Tem uma base específica para isso. E eu acho que, na medida em que houver uma fiscalização mais efetiva desses recursos, vai se verificar que há um montante muito expressivo de recursos, especialmente a chamada Emenda PIX, que é uma transferência direta para a prefeitura, que não tem a menor transparência, isso virá à tona. Então, o que se percebe, o que se vislumbra é que, primeiro, vai haver aí uma avalanche de denúncias de má aplicação desses recursos. Recursos públicos por má alocaçãode um lado, e de outro, muitas vezes a desnecessidade dos recursos naquela localidade. Tendo outros que precisam muito mais do Poder Executivo, que poderia destinar esse recurso com mais facilidade do que os próprios parlamentares. Mas eu acho que o que vai mudar isso é o sentimento da população, na medida em que ela perceber que esse dinheiro não vai atender às necessidades mais básicas da população. Mas o fato é que, enquanto tiver a sua conformação, vai ficar assim, ou seja, no mandato atual vai ficar até o final.
Como assim?
Assim, o Parlamento com muito peso, o presidente vetando matérias que considera contrárias ao interesse público, mesmo inconstitucionais, o Congresso derrubando esses vetos e o governo recorrendo ao Judiciário para evitar prejuízos em áreas de políticas públicas fundamentais. Então, vai ser um ambiente muito tensionado, vamos dizer assim.
Você projeta um 2024 mais tenso em relação a isso?
Eu acho que o governo dependerá menos do Congresso em 2024 do que dependeu em 2023. Eu acho que o governo vai fazer muitas entregas em 2024. E, considerando o fato de que o presidente da Câmara precisa se acomodar no governo em 2025, que é quando termina o mandato do presidente da Casa, porque se não tiver ao lado do governo, vai ter sobre ele uma pressão muito grande dos dois senadores de Alagoas, os Renans e também do governador, que são adversários políticos deles. E se estiver contra o governo federal, então esse presidente da Câmara, com um estilo muito autocrata, muito difícil o relacionamento com os parlamentares, uma visão assim muito autoritária de como conduzir a coisa, a situação deles se complica. Então a tendência dele é moderar o seu apetite, a pressão sobre o governo para que tenha condições de entrar para o governo assumindo algum ministério, para que tenha sobrevida política até a eleição de 2026. O mesmo se dá em relação ao Senado. Tanto o presidente da Câmara quanto do Senado foram reeleitos para presidência da Casa, portanto, não podem concorrer novamente. E o Pacheco, pelo que se sabe, deseja concorrer ao governo do estado de Minas Gerais. Então ele vai buscar uma postura de equilíbrio com alguns lances que sinalizem algumas ações que sinalizem para o eleitorado conservador ou ligado ao eleitorado mineiro. Um desses exemplos foi aquela votação da PEC em relação à limitação dos poderes do Supremo e fará outro gesto para essa base mais conservadora, para se viabilizar como candidato a governador. Agora ele não terá chance de se eleger se não tiver o apoio e a bênção do governo federal. E é por isso que ele vai ficar numa postura de equilíbrio. Vai dar duas para o governo e uma para oposição, ou para esses setores mais conservadores. Com isso, ele consegue dar governança no Senado, porque tem um terço que é bolsonarista lá, e consegue penetrar no eleitorado mineiro sem a pecha de que se aliou integralmente ou 100% a um governo mais à esquerda, e conta com as benesses desse governo para se viabilizar como candidato. Eu acho que, embora deva ser tenso, o governo vai depender menos do Parlamento, mas o fato é que a relação com o presidente das Casas tende a ser melhor em razão dessa dependência dos dois em relação ao governo federal.
Mas e em relação à dificuldade que o governo tem para consolidação de uma base governista? Alguns partidos que estão integrando o governo, como o União Brasil e o Republicanos, não estão entregando nas votações aquilo que o governo gostaria, o partido se divide. Como o governo pode contornar isso?
Com esses partidos vai ser impossível. Na prática, ter uma base sólida será sempre apoio condicionado, ou seja, negociando votação por votação. Os dois partidos que você mencionou disputam nos comerciais quem é o partido mais conservador do Brasil. Se o presidente da República é progressista, como é que o partido conservador pode apoiá-lo 100% nas suas pautas? Não tem a menor condição. Então esse conflito vai permanecer enquanto tivermos esse ambiente no país. E o que tem um certo glamour, uma certa base social, um certo apoio, se declarar de direita para garantir o voto do eleitorado anti-PT.
Até quando continua isso?
Esse clima vai continuar, mas eu acho que vai chegar o momento, especialmente após a apuração de denúncias que envolvam aí a gestão Bolsonaro, que revelem efetivamente quem mandou assassinar a vereadora Marielle lá do Rio de Janeiro, tudo isso pode, eventualmente, trazer fatos novos e enfraquecer esse movimento que continua muito forte, mesmo depois de ter sido condenado unanimemente nas manifestações de 8 de janeiro, que houve aquele quebra-quebra.
O presidente Lula, no seu primeiro discurso após ser eleito ano passado, disse que não havia dois Brasis e que mas conhecia, que havia derrotado Bolsonaro, mas não o bolsonarismo. Passado um ano, as pesquisas de opinião divulgadas agora recentemente ainda mostram as posições muito consolidadas. Quer dizer, quem apoiou o Bolsonaro continua com Bolsonaro. Quem apoiou Lula continua apoiando Lula. Ou seja, o país continua muito dividido. O que precisa ser feito agora para 2024 para distensionar um pouco isso é, se você acredita que o presidente precisa falar um pouquinho mais para fora da bolha, do grupo dele para alcançar, por exemplo, evangélicos, o pessoal do agronegócio?
Eu entendo que o governo começa a acertar na comunicação. Aquela publicidade do Farmácia Popular já é uma sinalização muito objetiva de que o caminho que vinha sendo adotado não era o adequado. Esse novo caminho é o correto. O que diz essa publicidade? Aparece uma senhora na Farmácia Popular com a criança no braço, com a camisa da seleção brasileira por baixo do casaco dela. A menina da farmácia aparece e diz: “Olha, do que a senhora precisa?” Ela fala: tem aqui o medicamento grátis. A senhora puxa a camisa para mostrar que é bolsonarista e pergunta: “Para mim também?”. A funcionária diz que é para todo mundo, esse governo é o governo dos brasileiros, etc e tal. Então isso distensiona e é fundamental que se distensione. Esse modelo que o Trump inventou nos Estados Unidos de polarização se esvazia na medida em que não se jogue gasolina nessa fogueira. Se os petistas ou as pessoas que não são bolsonaristas ignorarem solenemente a pauta dessa gente, essa pauta desaparece. Foi o que aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos, quando o Trump estava eleito presidente da República e no meio do mandato dele houve uma eleição para o Congresso americano e os democratas passaram uma ordem unida: não se fala de muro, não se fala de nada que faça parte do cardápio ou do receituário desse cidadão. Eles diziam que iam tratar do que interessava aos norte americanos e falaram de melhoria do salário, do plano e da necessidade do Estado de dar suporte para que as pessoas possam pagar um plano de saúde, refinanciar o Desenrola deles e financiar a educação. E tudo isso levou a que os democratas conseguissem, no meio do mandato, fazer maioria na Câmara dos Deputados, de modo que, quando se ignora esse discurso, ele perde a validade. Então, quanto mais se contesta, mais força esse pessoal ganha. E, neste particular, eles têm sido o aro, porque eles têm associado o Supremo ao governo. E o Supremo precisa tomar decisões que estejam acima dessas paixões, dessa disputa. E quando tem que tomar, por exemplo, sobre célula-tronco, união homoafetiva e outras mais, isso vai de encontro ao pensamento, à visão de mundo dessa gente. Aí associa com governo o desgaste do governo a partir daí. Então, tem que se fazer uma comunicação, o que dialoga com a oposição e com a população, sem provocar os instintos mais primitivos bolsonaristas.
Quais foram os principais acertos e os principais erros do presidente Lula neste primeiro ano?
Eu acho que o principal acerto, indiscutivelmente, foi desde o início fazer a PEC da Transição, sem a qual seria impossível governar este país com aquele orçamento engessado como estava. Substituir o teto de gastos pelo arcabouço. Esse foi um dos grandes acertos sinalizados antes mesmo da posse. Ou seja, o governo começou a governar antes de tomar posse. O segundo gesto foi aquele de subir a rampa com representação da sociedade, depois visitar os Yanomami, aquela tragédia humanitária que estava acontecendo na região Amazônica e, na sequência, visitar os países vizinhos. Aqui, a Argentina, para mostrar a necessidade de fortalecimento do Mercosul, e, por fim, retomar aquelas pautas sociais, todas com o compromisso de reinserir o Brasil no plano internacional. O Brasil era visto como pária e o presidente fez uma série de viagens que trouxeram benefícios para o país do ponto de vista de imagem, do ponto de vista de resultados concretos. E abraçou, contrariando tudo o que pensava o governo Bolsonaro, a pauta verde, a pauta ambiental que é a pauta do futuro. Então, esses, na minha avaliação, são os acertos. Os erros é ter ficado ainda durante muito tempo, provocando o Bolsonaro. Podia já ter adotado o que tem adotado agora, que é uma política de maior aproximação, melhor distensionar esse ambiente, mostrar que o governo não veio para perseguir adversários políticos, mas para, como diz o slogan do governo, fazer a União Nacional.
O governo conseguiu distensionar a relação com as Forças Armadas, muito identificadas com Bolsonaro?
Eu ousaria dizer, como diz o ministro José Múcio, que as Forças Armadas estão mais pacificadas em relação ao governo do que o próprio PT e tem uma série de correções internas. De modo que, eu acho, conseguiu administrar isso muito bem e foi inteligente de parte do presidente colocar alguém com trânsito nas Forças Armadas que não fosse visto no posto. Fosse um esquerdista inveterado, convicto que a qualquer custo, iria querer punir as Forças Armadas, sob a suposição de que elas deram suporte por eventual tentativa de golpe. Eu acho que a escolha do José Múcio e o modo como foram conduzidos todos esses processos evitou o problema seríssimo o país, que era uma divisão das Forças Armadas. Isso não aconteceu. Aquele episódio de Brasília que o presidente teve a oportunidade de fazer, aquela intervenção na segurança pública, Aquilo deu as condições para que pudesse trocar o ministro do Exército na época, que seria um problema se ele tivesse continuado com aquela medida muito acertada de trocar. Pacificou. Foram pacificadas as nossas forças, de modo que o relacionamento é muito bom. O presidente teve recentemente com os três comandantes das Forças e numa relação assim, muito harmoniosa, muito tranquila. E eles sabem que o Lula é acima de tudo um democrata, um cara que jamais vai descumprir a Constituição ou fazer qualquer tentativa que desrespeita o Estado democrático de Direito, porque se quisesse fazer, podia ter feito em 2010, quando a população pediu o terceiro mandato e ele optou por não fazê-lo, tendo 80% de aprovação popular, e o Supremo Tribunal Federal.
Você ressaltou que parte da sociedade, sobretudo os bolsonaristas, associa o Supremo ao governo. Como fica essa essa relação entre Executivo e Judiciário em 2024?
O Supremo foi determinante para preservar a democracia no Brasil. Sem aquele inquérito que hoje é coordenado pelo Alexandre de Moraes, os bolsonaristas certamente teriam forçado um golpe no país. Foi aquilo que pôs freio, junto com a entrada do centrão na base, que foi outro elemento importante para amortecer aquele clima de revanchismo, de dar golpe. Primeiro, foi o centrão, entrou, deu institucionalidade ao governo, fez com que as instituições pudessem trazer o governo para as quatro linhas da Constituição e, na sequência, isso não seria suficiente. Houve a necessidade do inquérito. O inquérito foi determinante porque Alexandre Moraes saiu em cima daqueles conspiradores todos que ficavam divulgando fake news e utilizando veículos de comunicação, financiando atos antidemocráticos, etc. Esse inquérito foi determinante. Agora parte do Supremo tem se valido desse inquérito para ir além do que, na minha avaliação, deveria. E isso tem criado mal-estar, especialmente entre os bolsonaristas, que não aceitam isso em hipótese nenhuma. Essa ideia de que o Supremo pudesse investigar adversários políticos, o que efetivamente está ocorrendo. Mas o Supremo sabe que o poder sem voto não se sobrepõe em relação a um poder com voto. De modo que tanto o Supremo quanto o Ministério Público tendem a necessariamente voltar para o seu quadrado, de tal modo que deixe o governo eleito governar. E aí tem instituições que governam e são aquelas cujos titulares são sufragados pelo voto universal, Legislativo e Executivo e aquelas que impedem o desgoverno, que é o caso do Supremo e do Ministério Público. Então eles vão certamente indo, moderando a situação, de tal modo a haver uma, uma situação absolutamente harmônica. Por que o Supremo, o Ministério Público, em dado momento desarvoraram? Porque o governo era fraco, um governo forte, que lidera, que está em curso, o Supremo vai entrar apenas pra arbitrar conflitos, que não foi possível fazer no plano da política e vai para a área jurídica. E aí se determina e se cumpre a decisão.
O presidente da Câmara já disse algumas vezes que que pretende tocar a reforma administrativa como prioridade no próximo ano. O presidente do Senado já não demonstra o mesmo entusiasmo com a proposta e fala mais em focar em pautas ali voltadas a mudanças na composição, por exemplo, do Supremo e no fim da reeleição. Como será essa queda de braço em 2024?
Acho que não tem o menor ambiente para que essa reforma prossiga, porque ela foi feita no outro governo, com outro governo, em outras circunstâncias. Os fatos já atropelaram essa reforma, já perdeu completamente o sentido. Essa reforma tem três pressupostos, os três falsos. O primeiro é de que existe superioridade do setor privado em relação ao setor público na prestação de serviços. Isso não é verdade no mundo onde o Estado foi substituído por gente do setor privado para substituir o funcionário de carreira para tocar a máquina ou resultou em estado mínimo. A segunda é de que o servidor público ganha muito, trabalha pouco e está em grande quantidade. É outra inverdade. O salário dos servidores agora está numa faixa intermediária, portanto, não está nem abaixo nem acima de uma média que deveria ser a correta. E terceiro, é de que quando foi feita a reforma, os servidores públicos eram de esquerda, comunista, e, portanto, estavam a serviço de um projeto do adversário político do presidente da República, porque a solução, portanto, era reduzir o Estado, perseguir e demitir os servidores através de capatazes indicados para cargos de confiança, etc. Então, a lógica da reforma é essa, ela em nada contribui para a melhoria dos serviços públicos. Há sim necessidade de uma reforma administrativa, mas não essa que foi proposta, porque essa tem por objetivo vigiar e punir o servidor público e desmontar serviço público. Isso é o que efetivamente essa reforma propõe. Aliás, foi a reforma em que o movimento sindical dos servidores que mais produziu conteúdo, mostrando o quanto ela seria nefasta caso viesse a ser aprovada. E a minha convicção é de que não será aprovada porque o ponto central dela é acabar com a estabilidade do servidor. E ficou demonstrado durante a pandemia que sem estabilidade do servidor não existiria a estabilidade do Estado brasileiro. O papel do SUS dos servidores nesses processos foi irretocável. Enquanto todo mundo estava recolhido nas suas casas, os servidores estavam na linha de frente, salvando vidas.
O presidente Rodrigo Pacheco disse que fim da reeleição é prioridade para ele votar no ano que vem. Segundo ele, e com todos os senadores que ele conversa, há uma força grande para votar esse projeto. Enfim, o que que poder, que uma votação de uma proposta como essa, por exemplo, pode ter o que ela pode causar ali no no jogo político, na relação do Executivo com o Legislativo?
Esse tema da reeleição é recorrente desde que foi instituído lá no governo Fernando Henrique. A minha avaliação é que a reeleição é positiva, porque ela dá continuidade a governos. O governo tem na prática, o mandato de oito anos, que tem uma aferição no meio. Se o sujeito não for aprovado, é porque ele é muito ruim. Então, a adoção de um mandato de quatro anos, por exemplo, sem reeleição, será trágico pro país. Porque quando o sujeito aprende os mecanismos, as leis, os ritos, os processos e começa a ter condições reais de governar o mandato dele começa a ser disputado já numa eleição seguinte. Então, se é para fazer eleição, seria acabar com a reeleição. O mandato teria que ser mais elástico. Mas, por outro lado, também se colocar um mandato de seis anos pode ser muito longo. No caso brasileiro, então, o ideal é que continue a reeleição a cada quatro anos, como é hoje, e unifique os processos eleitorais. Já seria uma economia enorme se as eleições houvesse coincidência de a cada quatro anos há uma eleição envolvendo os três níveis de governo, União, estados e municípios. Isso já seria uma racionalidade. Outra coisa é rever o financiamento de campanha, gastar R$ 5 bilhões numa campanha municipal. E, cá pra nós, neste particular, o Pacheco tem razão é um absurdo completo e absoluto. Não se justifica se gastar numa eleição municipal o mesmo que se gasta numa eleição nacional. Perfeito. E ano que vem também.
Outro desafio para o governo vai ser regulamentar a reforma tributária e também avançar com a reforma sobre o Imposto de Renda. Quais são as perspectivas que você enxerga?
Acho que o governo vai utilizar muito os mecanismos administrativos a partir da legislação existente para melhorar sua performance do ponto de vista da arrecadação. Porque a regulamentação dessa reforma vai ser muito disputada. Felizmente, os fundamentos são muito razoáveis, porque dificilmente uma lei vai conseguir distorcer aqueles princípios gerais que estão na Constituição. Mas o fato é que os lobbies vão fazer muita pressão no sentido de pagar menos imposto do que já pagam hoje e, portanto, fazer com que aquela aquela regra que está lá possa ser flexibilizada para contemplar novos setores que não foram contemplados. E, com isso, vai ter muita judicialização. Tem muita lei para complementar as relações. Mas é bom dizer o seguinte a reforma tratou apenas do consumo. Ainda tem a reforma sobre renda e patrimônio e essa vai ser a mais significativa. Vem aí, possivelmente tributação de lucros e dividendos, que o Brasil é um dos poucos países que não paga, tabela progressiva no imposto de renda, já se estabeleceu no consumo a figura do cashback, que é uma devolução para os mais pobres do imposto que paga embutido na cesta básica. Então já é um avanço e você não subsidia os ricos e devolve aos pobres aquilo que eles pagaram em tributos dos bens essenciais à sua sobrevivência. E esperamos que na reforma de base, renda e patrimônio se tribute proporcionalmente a capacidade contributiva. Ou seja aqueles que têm maior patrimônio, que ganham mais, pague mais e os que ganham menos, pague menos.
2024 é um ano de eleições municipais. Que tipo de erro o PT e o presidente Lula não podem cometer na articulação das alianças sob risco de comprometer uma eventual candidatura dele à reeleição e mesmo a eleição de um Congresso menos conservador em 2026?
A tática do presidente tem que ser coerente com o seu discurso de união e reconstrução. Assim deve cultivar ao máximo a relação com as forças que o apoiam e sempre na perspectiva de cumprir o seu programa de governo. O erro a ser evitado é o isolamento político, especialmente perante o agronegócio e os evangélicos, que ainda o rejeitam muito. Do enfrentamento aos excessos do bolsonarismo devem cuidar a Justiça e os partidos de esquerda, especialmente o PT. O partido, por sua vez, não pode deixar de lançar candidato próprio ou fazer aliança no campo da esquerda, centro-esquerda e centro, só compondo com setores de sua base a direita onde não tiver a menor chance de disputar e mesmo assim mediante um acordo de não agressão ao governo. Tem que fazer o contraponto as forças de direita e extrema direita.
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