Marcelo Soares*
Deve avançar nesta quarta-feira a tramitação do projeto de lei 2370/19, que propõe maneiras para que as “big techs” remunerem artistas e empresas jornalísticas pelo uso do conteúdo que produzem. A versão atual do projeto é apoiada por grandes empresas como os grupos Globo e Folha e vista com ressalvas por outros potenciais interessados. É um bom momento para uma conversa séria sobre critérios.
Quem já viu a versão atual do texto informa que a remuneração se basearia em três critérios: quantidade de conteúdo original publicado, volume de audiência e volume de profissionais contratados formalmente. O terceiro critério beneficia principalmente empresas grandes; como é raro ver novas leis estimularem o trabalho formal, porém, esse talvez seja o menos problemático dos critérios.
Quero aqui desenvolver um raciocínio sobre por que os outros dois são problemáticos. Se o PL da remuneração pelo conteúdo passar com esses critérios como base, ao invés de estimular um ambiente de informação mais saudável, tenderá a amplificar distorções que premiam o sensacionalismo barato. Os incentivos a que os agentes respondem, ensinam os economistas, são a chave para compreender dinâmicas adversas.
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Para deixar o argumento mais claro, vou usar um exemplo conhecido, o caso Gal Costa.
No início de julho, a revista “piauí” publicou uma extensa reportagem descrevendo o possível caráter abusivo do relacionamento em que vivia a cantora Gal Costa. Uma das mais bem-sucedidas artistas do Brasil, Gal passou seus últimos anos com muito menos atividades do que poderia, contraindo inclusive dívidas desnecessárias. O repórter Thallys Braga passou semanas ouvindo pessoas próximas à cantora para, a partir dos seus testemunhos, reconstruir sua história. É um trabalho decididamente original e de qualidade.
PublicidadeA tragédia pessoal de uma pessoa tão conhecida é irresistível num ambiente de informação movido pela economia da atenção. Especialmente se entre seus elementos estiver alguma possibilidade de fofoca sobre a sexualidade de uma pessoa pública muito reservada, como era o caso de Gal.
Como a principal forma de financiamento de sites jornalísticos de acesso gratuito é a árvore de natal de anúncios que muitos colocam em cada página, e como o preço pago por esses anúncios é calculado por mil visualizações, um estouro de interesse assim vira ouro. Todos querem postar algo a respeito para disputar algum naco do vagalhão de cliques gerado por essa curiosidade do público.
As “big techs” estimulam esse ambiente, colocando à disposição das redações ferramentas como o Google Trends, que mostra quais são as palavras mais buscadas a cada momento, e o Crowdtangle, que informa quais são as postagens mais compartilhadas no Facebook. As redações as usam para informar seu critério editorial. Lidas de maneira apressada, estimulam a repetição de assuntos no noticiário. Geralmente, com um viés sensacionalista e de baixa relevância social: a aspa escandalosa, o crime pavoroso, políticos batendo boca, “ficadas” de subcelebridades e, viva, imagens de gatos e cachorros fazendo travessuras.
O texto de Thallys Braga sobre Gal Costa foi publicado no site da “piauí” na manhã de 6 de julho. Horas depois, o nome da cantora estourou nas buscas do Google e do Facebook pela segunda vez desde 2004 – a primeira, e maior, foi o dia da sua morte. Com esse pico de interesse, uma torrente de postagens de sites caça-clique passou a tratar do assunto.
Nos primeiros dois dias, só no Facebook, páginas de conteúdo reconhecidas pelo Crowdtangle registraram 386 postagens sobre o caso. A mais compartilhada era a do programa de fofocas “Melhor da Tarde”, da Bandeirantes, com o título “Viúva de Gal Costa é acusada de extorsão e assédio moral”. O vídeo foi visto quase 123 mil vezes, com 3,8 mil reações, 331 comentários e 187 compartilhamentos.
A segunda era do programa “A Tarde é Sua”, de Sônia Abrão. Em suas redes sociais, a jornalista Hildegard Angel havia pedido a exumação do corpo de Gal Costa. Abrão resenhou a opinião acrescentando a sua. O vídeo, visto 117 mil vezes, teve 133 comentários, 4,4 mil reações e 98 compartilhamentos.
Já a postagem do texto original feita pela “piauí”, não sendo um vídeo, não tem o dado de visualizações. Teve 522 reações, 83 comentários e 82 compartilhamentos. A diferença nos volumes de participação do público tende a indicar que esse post teve menos audiência do que os outros.
Pelo critério do volume de audiência, as opiniões do “Melhor da Tarde” e da Sônia Abrão teriam direito a remuneração maior pelo Facebook do que o trabalho da “piauí”, cujo repórter passou dias apurando para contar direito a história.
Pelo critério do conteúdo original, as emissoras sempre podem argumentar que não republicaram o texto da “piauí” e que seus comentaristas contratados produziram conteúdo próprio a respeito – no caso, as suas opiniões sobre o tema do trabalho original.
Como o caso da reportagem sobre Gal, há muitos outros. O Google News está repleto de publicações que vivem de repetir o que outras estão falando sobre os assuntos do momento. Todo dia, em todas as editorias. Muitas empresas têm verdadeiros “setoristas de Twitter” para transformar em notas curtas o que pessoas públicas dizem nas redes sociais. Dependendo da definição, isso também conta como original.
As melhores publicações atuais, que produzem muito material jornalístico de interesse público, não produzem conteúdo em grande quantidade. Tendo equipes pequenas, preferem produzir material relevante sobre assuntos inéditos, em vez de procurar alguma coisa para dizer sobre cada assunto que ganha tração nas redes sociais.
Essas publicações também tendem a ter baixa audiência, porque conteúdo de interesse público dificilmente caça tantos cliques quanto a última paquera de uma celebridade ou a mais nova frase infeliz dita por algum político. Ao mesmo tempo, é justamente o trabalho dessas publicações que mais precisa de apoio financeiro para manter a independência.
O peso que as “big techs” ganharam na distribuição do conteúdo jornalístico, porém, direcionou muitas empresas de comunicação – inclusive as grandes que passaram décadas construindo uma reputação pela qual zelar – no sentido de caçar clique com a mesma desfaçatez que qualquer site que viva de plagiar conteúdo alheio.
É por isso que temos visto tanto jornalismo declaratório, tanta fofoca de celebridades (de tantos famosos de quem nunca ouvimos falar) e tanto colunismo escandaloso. Caça-se cliques até nos obituários, hoje em dia. Quanto mais gritante for o conteúdo, mais chance tem de caçar cliques nas redes sociais e na busca.
Deve haver critérios claros para a remuneração do conteúdo, com certeza, mas levar em conta apenas a quantidade tende a premiar o sensacionalismo.
O critério puramente quantitativo já foi comparado ao do serviço de “streaming” Spotify, outra famosa “big tech”. Embora ele tenha em sua base de dados quase toda a história da música mundial, a fatia do leão na remuneração vai para os poucos artistas mais populares do momento. Dados de 2020 mostram que 90% das audições iam para apenas 1% dos artistas incluídos na plataforma. Eles geralmente são vinculados a gravadoras que pagam à plataforma – ou renunciam à receita de parte dos seus royalties – para incluir suas músicas em playlists promovidas. É o que antigamente se chamava de “jabá”. Além disso, já foram relatados casos de empresas contratadas para simular roboticamente altos volumes de audições de um artista, fraudando os números de audiência para que ele pareça ser mais popular do que é (e melhorando suas condições de negociação com a plataforma).
Com as notícias, dependendo da plataforma, uma empresa que tenha recursos disponíveis pode pagar para impulsionar conteúdo, aumentando seu alcance e visualizações. Esse impulsionamento, se entrar no cálculo da remuneração, gera incentivos completamente alheios ao interesse público. E aliena ainda mais as publicações independentes, gerando o que o historiador da ciência Robert Merton observou no meio científico e chamou em 1968 de “efeito Mateus”: quem mais tem mais recebe.
Seria muito importante que um projeto assim viabilizasse financeiramente a produção de reportagens de interesse público e barrasse publicações que produzem conteúdo enganoso, os famosos sites de “fake news”. Como o critério atual não leva em conta qualquer elemento de qualidade do conteúdo (o que é de fato difícil de legislar), isso não está contemplado.
Por isso, é preciso levar em conta outros fatores, como a produção de conteúdo local – muitos sites caçadores de cliques, mesmo quando espalhados pelo interior do Brasil, vivem de plagiar e glosar qualquer assunto que esteja em voga, pouco melhorando a informação de interesse direto de onde vivem – e a diversidade das equipes que produzem o conteúdo. É preciso valorizar as publicações sem fins lucrativos e as que vivem do apoio voluntário dos seus leitores. É importante valorizar as que produzem jornalismo de interesse público e mantêm seu conteúdo aberto, sem restringi-lo apenas a seus assinantes – o que empresarialmente é um modelo legítimo, mas em termos de políticas públicas merece discussão. Na equipe, é necessário levar em conta a proporção de repórteres, mais do que a de colunistas ou editores, pois são esses profissionais que apuram informação original.
E sobretudo é preciso transparência. Se as big techs tiverem de abrir detalhadamente quanto pagaram a quem por quantas visualizações do quê, isso permite fazer comparações e avaliar o quanto a política de pagamento por direitos autorais atende ou deixa de atender ao interesse público.
Um ambiente de informação sensacionalista dá espaço para que a classe política também suba cada vez mais o tom, pois nele quem não apela desaparece. Já vimos o resultado de algo semelhante. Se além de tudo houver incentivo financeiro, o sensacionalismo vai reinar e carregar a desinformação de carona.
* Marcelo Soares é jornalista e fundador do estúdio de inteligência de dados Lagom Data, foi o primeiro editor de desenvolvimento de audiência da imprensa brasileira.
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