“Além da PEC que acaba com as decisões monocráticas das Cortes superiores, Lira também enviou à CCJ da Câmara uma outra proposta sobre o Supremo, protocolada no sábado (10/8) pelo deputado Reinhold Stephanes (PSD-PR). A segunda PEC permite que decisões do STF ‘no exercício da jurisdição constitucional em caráter concreto ou abstrato’ possam ser sustadas por até quatro anos pelo Congresso Nacional” (fonte: metropoles.com).
O debate sobre a possibilidade, como validade jurídica, de o Parlamento revisar ou sustar decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) envolve questões fundamentais do Estado Democrático de Direito como a separação dos poderes, a estabilidade institucional e o respeito ao princípio majoritário.
As próximas e singelas linhas de abordagem da instigante temática pretendem considerar os aspectos jurídicos e políticos mais relevantes. Não serão tratadas as motivações menores para iniciativas parlamentares que tentam manietar a atuação do Supremo Tribunal Federal. O desprezível jogo de pressões e chantagens para obter esta ou aquela posição não será aqui tratado.
A Constituição Federal brasileira estabelece, logo no seu segundo artigo, a separação dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Cada Poder tem competências específicas que não podem ser usurpadas pelos outros. Viabilizar que o Parlamento revise ou suspenda decisões do STF, no exercício da jurisdição constitucional, violaria esse princípio, enfraquecendo o Judiciário e comprometendo o equilíbrio entre os Poderes.
Com efeito, é expressa a competência do STF de guardar à Constituição (art. 102, caput). Assim, diante de afronta às regras ou princípios consagrados no Texto Maior, todos com força normativa, o STF, quando devidamente provocado, pode e deve atuar com energia e determinação. O papel de guardião da Constituição é a mais importante e mais nobre das missões a ser cuidadosa e criteriosamente efetivada pelo STF.
Da condição de guardião da Constituição atribuída ao STF decorre que a última e definitiva interpretação e aplicação das normas constitucionais cabe ao órgão de cúpula do Poder Judiciário. Admitir a revisão ou suspensão de decisões do STF pelo Parlamento violaria esse capital atributo da competência do Tribunal, inafastável para realizar o equilíbrio entre os três Poderes do Estado Democrático de Direito.
O Poder Judiciário, nos exatos termos do artigo segundo da Constituição, é independente. Assim, as decisões adotadas pelos magistrados, em especial pelo STF, devem ser pautadas na Constituição e nas leis em vigor, sem influências ou pressões externas indevidas. A revisão ou suspensão de decisões do STF pelo Parlamento comprometeria a independência judicial. Afinal, um componente inaceitável seria introduzido no universo de considerações a serem realizadas pelos membros do STF, justamente a possibilidade de agradar ou satisfazer interesses políticos circunstanciais.
Ademais, os posicionamentos do STF no exercício da jurisdição constitucional tendem a ser definitivos e vinculantes. Trata-se da salutar busca pela estabilidade e a previsibilidade de aplicação do ordenamento jurídico. Introduzir a possibilidade de revisão ou suspensão de decisões do STF pelo Parlamento criaria um indesejável quadro de incertezas, disputas e instabilidade jurídica, com consequências negativas nos campos econômico e social.
Importa destacar que a maioria ocasionalmente formada no Parlamento não pode adotar toda e qualquer decisão, mesmo alterando o texto da Constituição por intermédio de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). O princípio majoritário exercitado pelo Parlamento, na condição de Poder Constituinte Derivado, não é superior à mesma diretriz consagrada pelo Poder Constituinte Originário.
A impossibilidade de adoção de determinadas decisões pela via da PEC está expressamente consagrada no art. 60, parágrafo quarto, da Constituição. Entre as chamadas cláusulas pétreas está “a separação dos Poderes” (inciso III do dispositivo aludido). Portanto, atribuir ao Parlamento a competência de revisar ou suspender deliberações do STF afronta inapelavelmente o inciso III do parágrafo quarto do art. 60 da Carta Magna.
Não custa lembrar que o STF já declarou, em várias ocasiões, a inconstitucionalidade de emendas à Constituição por violação de cláusulas pétreas. A primeira dessas decisões ocorreu na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 939. Na oportunidade, o STF afirmou a inconstitucionalidade de alguns dispositivos da Emenda Constitucional n. 3, de 1993, por afronta ao art. 60, parágrafo quarto, incisos I e IV do Texto Maior.
Em um Estado Democrático de Direito, como o caso brasileiro, a Corte Constitucional exerce um importantíssimo papel contramajoritário. Essa função contempla a proteção dos direitos fundamentais e a manutenção do regime democrático, mesmo contra as maiorias temporárias formadas no âmbito do Poder Legislativo. A imprescindibilidade desse instrumento reforça o argumento de que o Parlamento não pode rever ou suspender decisões do STF.
A acusação de que o Supremo Tribunal Federal “governa” ou “legisla”, principal motivação para as proposições que buscam as revisões ou suspensões legislativas das decisões da Corte, revela uma incompreensão visceral acerca do papel do STF, como antes destacado, e da profunda mudança paradigmática operada no Direito como instância de conformação de condutas na sociedade.
As Constituições, notadamente a partir da segunda metade do século 20, por inúmeras razões históricas, políticas e socioeconômicas, “ganharam” força normativa. As Constituições perderam o caráter de meras recomendações para balizar a necessária atuação do legislador. Em especial, os princípios jurídico-constitucionais passaram a ser diretamente aplicados pelo Judiciário para assegurar direitos fundamentais, afirmar o regime democrático e combater abusos de poder de vários tipos.
Assim, o Supremo Tribunal Federal não atua como um substituto do Executivo ou do Legislativo, mas como um guardião da Constituição. Esse papel é essencial no Estado Democrático de Direito. Insatisfações e discordâncias em setores da sociedade e do Parlamento não podem funcionar como combustíveis para retrocessos civilizatórios de grande monta.
As ponderações realizadas não sustentam uma espécie de infalibilidade do STF e muito menos que não possa ser criticado em suas decisões. Como toda instituição composta por seres humanos passíveis de erros, o STF incorre em equívocos de várias magnitudes. Em outras sedes, já formulei várias e fortes críticas a decisões do STF e comportamentos de seus integrantes. Aliás, as críticas fundamentadas e respeitosas às decisões do STF são essenciais: a) para manter o ambiente democrático; b) concorrer para mitigar os desacertos do Tribunal; c) estabelecer um saudável controle social sobre a atuação do colegiado e de cada um dos seus integrantes e d) estimular a responsável autocontenção da Corte.
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