Geórgia T. Jezler Campello *
É do sociólogo espanhol Manuel Castells a advertência de que a democracia deixou de ser democrática. Sob esse prisma, a crise de legitimidade que atinge nosso sistema político em diversas dimensões impõe um “repensar a democracia”. Um processo que exige de nossas instituições o desempenho de um papel fundamental na busca de novas fórmulas de representação, participação e exercício dos valores republicanos que fundam a sociedade brasileira.
Isso porque o povo só voltará a acreditar na democracia estabelecida em nosso contrato social quando se der a abertura efetiva à sua participação e a realização dos seus interesses essenciais. O fechamento do sistema político à participação popular, o desrespeito ao bem comum e a sua abertura ao poder econômico corrompem os códigos democráticos, causando insegurança e a disseminação do descrédito.
Por conseguinte, contamina-se também o sistema jurídico, na medida em que, nesse contexto, muitas vezes a edição de leis está mais próxima de uma queda de braço entre partidos políticos, do que de uma avaliação sobre o conteúdo legislado e se este, de fato, representa a real necessidade do titular do poder, que, não custa lembrar, é o povo. Ficamos, assim, assistindo ao confronto de grupos políticos, enquanto os preceitos constitucionais, que nos custaram a luta de gerações, são tratados como mercadorias e negociados a “preços” irrisórios, perdendo a sua significação normativa.
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Não é preciso citar nomes. Esse problema não tem um titular específico, mas é resultado de um sistema permeável, que há anos se reconstrói porque abriu as suas portas e janelas, dando trânsito a interesses particularistas. Compromete-se, assim, o valor da autonomia. A consequência imediata, muitas vezes, é um produto legislado sem efetividade, descumprido e desrespeitado. Uma legislação meramente simbólica, ineficaz juridicamente e responsável pela descrença da sociedade nos Poderes Públicos. São inúmeros os exemplos de legislações com essas características.
PublicidadeÉ preciso uma mudança estrutural. Nem uma pessoa ou partido específico, nem a justiça com as próprias mãos, tampouco legislações açodadas resolverão a questão. Isto porque democracia é processo. A concentração das coalizões a partir do poder central, marca da formação institucional que tivemos, é uma das causas dos problemas apontados, porque os partidos políticos acabam votando e apoiando projetos em total desacordo com a própria ideologia que os constitui. Desse modo, a excessiva centralização do poder alimenta esse quadro caótico.
É preciso que se reforce a autonomia das instituições. A ausência da real independência dos Estados e municípios, a sua subordinação ao poder central, visando o suporte para renegociar dívidas, obter repasses e recursos para investimentos; os reflexos que sofrem com as desonerações e isenções concedidas no âmbito federal e que comprometem os recursos repassados; a centralização das políticas públicas, que ainda é monopólio do Executivo; todos são fatores que contribuem para a crise mais profunda pela qual passa o Estado brasileiro.
O caminho a ser percorrido é o inverso. A efetiva autonomia dos entes federativos, portanto, permite, diante da maior proximidade dos cidadãos às gestões locais, o crescimento da cobrança e da fiscalização dessas unidades, o que tem por consequência uma percepção mais clara das expectativas do ambiente social, podendo assim ser aprimorada a inteligência do Estado para dar cumprimento ao esperado pela sociedade.
Relevante, igualmente, que se atente para a edição e cumprimento de limitações específicas, para a criação responsável de municípios no Brasil, evitando assim a proliferação de celeiros eleitorais e unidades administrativas insustentáveis sob qualquer ponto de vista.
O momento, portanto, é de reorganização do pacto federativo. Há comissões legislativas formadas para essa reflexão. Devem se constituir, nesse sentido, como os fóruns capazes de gestar soluções estruturais para a crise, conferindo especial atenção aos municípios brasileiros. Um novo pacto federativo, portanto, que privilegie a emancipação dos Estados e municípios, apresenta-se como caminho para o florescimento da real autonomia desses entes políticos.
É esse o centro de maior potencial para um recomeço e uma retomada, com solidez, de um novo sistema político e representativo, que fortaleça e estimule a democracia brasileira.
* Geórgia T. Jezler Campello, presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM).
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