Em 1966, Richard Fenno escreveu The power of the purse: Appropriations Politics in Congress (O poder da bolsa: política de apropriações no Congresso). Um amplo e profundo estudo, resultante de centenas de entrevistas com parlamentares, para buscar compreender o processo legislativo orçamentário estadunidense. Tema complexo, por conta da grandiosidade dos números e da relativa hermeticidade das técnicas de contabilidade nacional e da confecção da peça orçamentária. Porém o assunto se faz presente no cotidiano de todos, uma vez que o Orçamento Público pode ser compreendido como uma tradução contábil de tudo o que o poder público faz ou pretende fazer.
Dada essa sua centralidade, não é de se estranhar que ocasionalmente surjam escândalos e polêmicas envolvendo o Orçamento. No Brasil, já foram várias e notórias. Nos últimos dias, uma dessas polêmicas entrou no radar da grande mídia: o Congresso Nacional estaria se assenhorando de uma grande parcela do Orçamento Público nacional, em detrimento do Poder Executivo.
O assunto rendeu muitas manchetes: O Estado de S. Paulo – Congresso tem poder inédito sobre orçamento e impõe agenda de projetos; O Globo – Fatia do orçamento definida pelo Congresso no Brasil é 9 vezes maior que nos EUA – emendas dificultam ainda mais déficit zero; UOL – Emendas triplicam desde 2015: como o Centrão reduziu o poder do Presidente; Exame – Uso do orçamento no Congresso não tem paralelo no mundo; são alguns exemplos. O Congresso em Foco também registrou matéria sobre o assunto: Poder de parlamentares brasileiros para definir orçamento é o maior entre membros da OCDE.
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Houve até a mobilização da sociedade civil, promovida pela Rede Democracia e Direitos Humanos, que liderou um abaixo-assinado para condenar o avanço do Congresso sobre o Orçamento, tratado como uma aberração jurídica, conforme registrado pelo brilhante jornalista Sylvio Costa.
Um venusiano que estivesse de passagem pelo planeta, com pouco tempo antes de sua próxima partida e, portanto, só pudesse ler as manchetes, ficaria abismado, de fato. Como em nenhum momento as manchetes qualificam o assunto, a sensação é que, de fato, o Congresso brasileiro tem nas mãos um enorme poder sobre o Orçamento Público. As derivações lógicas, ainda que subreptícias, são claras: as eventuais deficiências de políticas públicas (lembra-se que o Orçamento Público é uma tradução daquilo que o poder público fez ou pretende fazer?) são responsabilidade do Congresso Nacional.
Como Richard Fenno, e tantos outros que se debruçam tecnicamente sobre o assunto [Pausa para uma homenagem: faleceu hoje Affonso Celso Pastore, economista que em diversos momentos se manifestou sobre o tema das Finanças Públicas] demonstraram, há que se ter calma.
PublicidadeA Tabela a seguir apresenta a evolução da composição do Orçamento Público brasileiro desde 2019, em milhões de reais.
2019 | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 | |
TOTAL | 3.262.199 | 3.565.520 | 4.161.236 | 4.726.928 | 5.197.636 | 5.409.350 |
0 – Financeira | 1.560.034 | 1.809.123 | 2.375.741 | 2.627.795 | 2.719.739 | 2.715.133 |
1 – Primária obrigatória, considerada no cálculo do RP | 1.564.482 | 1.620.525 | 1.656.323 | 1.954.069 | 2.269.752 | 2.471.418 |
2 – Primária discricionária, considerada no cálculo do RP | 101.931 | 89.664 | 93.669 | 109.363 | 171.638 | 123.611 |
3 – Primária discricionária, PAC, considerada no cálculo do RP | 22.026 | 0,00 | 0,00 | 0,00 | 0,00 | 54.513 |
6 – Primária discricionária, decorrente de emendas individuais, considerada no cálculo do RP | 9.143 | 9.468 | 9.670 | 10.930 | 21.245 | 25.068 |
7 – Primária discricionária, decorrente de emendas de bancada estadual, considerada no cálculo do RP | 4.579 | 5.927 | 7.301 | 5.866 | 7.691 | 8.557 |
8 -Primária discricionária, decorrente de emendas de comissão permanente do SF, da CD e de comissão permanente do CN, considerada no cálculo do RP | 0,00 | 687 | 0,00 | 2.402 | 7.566 | 11.048 |
9 – Primária discricionária, decorrente de emendas de relator-geral do PLOA, excluídas as de ordem técnica, considerada no cálculo do RP | 0,00 | 30.123 | 18.529 | 16.500 | 0,00 | 0,00 |
A próxima tabela traz os mesmos dados, porém transformados em porcentual.
2019 | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 | |
TOTAL | 100,00 | 100,00 | 100,00 | 100,00 | 100,00 | 100,00 |
0 – Financeira | 47,82 | 50,74 | 57,09 | 55,59 | 52,33 | 50,19 |
1 – Primária obrigatória, considerada no cálculo do RP | 47,96 | 45,45 | 39,80 | 41,34 | 43,67 | 45,69 |
2 – Primária discricionária, considerada no cálculo do RP | 3,12 | 2,51 | 2,25 | 2,31 | 3,30 | 2,29 |
3 – Primária discricionária, PAC, considerada no cálculo do RP | 0,68 | 0,00 | 0,00 | 0,00 | 0,00 | 1,01 |
6 – Primária discricionária, decorrente de emendas individuais, considerada no cálculo do RP | 0,28 | 0,27 | 0,23 | 0,23 | 0,41 | 0,46 |
7 – Primária discricionária, decorrente de emendas de bancada estadual, considerada no cálculo do RP | 0,14 | 0,17 | 0,18 | 0,12 | 0,15 | 0,16 |
8 -Primária discricionária, decorrente de emendas de comissão permanente do SF, da CD e de comissão permanente do CN, considerada no cálculo do RP | 0,00 | 0,02 | 0,00 | 0,05 | 0,15 | 0,20 |
9 – Primária discricionária, decorrente de emendas de relator-geral do PLOA, excluídas as de ordem técnica, considerada no cálculo do RP | 0,00 | 0,84 | 0,45 | 0,35 | 0,00 | 0,00 |
Aqui já começam a ficarem óbvios alguns dos problemas do Orçamento Público brasileiro. Primeiro, o Orçamento ficou muito engessado com despesas obrigatórias (45,69%) para o ano de 2024. Segundo, as despesas financeiras (incluídos aí os juros sobre a dívida pública) consomem 50% do Orçamento (50,19% para 2024). Entende-se porque a questão do tamanho da dívida pública e o valor da taxa de juros são assuntos tão política e economicamente sensíveis. Ou seja, aquilo que vou chamar aqui de espaço fiscal disponível se restringe a 2,29% (para 2024) do Orçamento Público. O espaço fiscal disponível seria, portanto, o Orçamento Total, subtraído das despesas primárias obrigatórias e das despesas financeiras.
Fazendo-se um recorte da tabela anterior, tem-se:
2019 |
2020 |
2021 |
2022 |
2023 |
2024 |
|
TOTAL |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
100 |
6 – Primária discricionária, decorrente de emendas individuais, considerada no cálculo do RP |
0,28 |
0,27 |
0,23 |
0,23 |
0,41 |
0,46 |
7 – Primária discricionária, decorrente de emendas de bancada estadual, considerada no cálculo do RP |
0,14 |
0,17 |
0,18 |
0,12 |
0,15 |
0,16 |
8 -Primária discricionária, decorrente de emendas de comissão permanente do SF, da CD e de comissão permanente do CN, considerada no cálculo do RP |
0,00 |
0,02 |
0,00 |
0,05 |
0,15 |
0,20 |
9 – Primária discricionária, decorrente de emendas de relator-geral do PLOA, excluídas as de ordem técnica, considerada no cálculo do RP |
0,00 |
0,84 |
0,45 |
0,35 |
0,00 |
0,00 |
TOTAL DA FATIA “COMANDADA” PELO CONGRESSO |
0,42 |
1,3 |
0,86 |
0,75 |
0,71 |
0,82 |
Surpreso? Deveria estar. Os percentuais que surgem na última linha representam, na prática, os valores decididos pelo Congresso Nacional no Orçamento Público. E são bem inferiores ao que se poderia imaginar pela leitura das manchetes citadas. Em seu maior valor, no ano de 2020, a fatia determinada pelo Congresso Nacional no Orçamento Público correspondeu a 1,3% (um vírgula três por cento) do Orçamento Total.
Respondendo às críticas feitas, o Presidente da Câmara dos Deputados apontou justamente para o reduzido valor da participação do Congresso Nacional no Orçamento Total: “Eu costumo dizer: o tão polêmico Orçamento do relator-geral tem tido sempre adequações para torna-lo mais transparente, mais acessível, mais justo, mais perto dos anseios populares. E ele equivale a 0,03% do Orçamento Geral da União”. Ressalte-se que o Presidente está falando da penúltima linha (9- Primária discricionária, decorrente de emendas de relator-geral do PLOA, excluídas as de ordem técnica, considerada no cálculo do RP), que, em 2022, apresentou o percentual de 0,35%.
Então todas aquelas manchetes estavam erradas? Não completamente, porém, omissas sim. Ao se entrar nos textos, percebe-se melhor que a discussão gira em torno do percentual do Orçamento definido pelo Congresso Nacional em relação, apenas, ao que chamei de espaço fiscal disponível. A próxima tabela torna isso mais claro.
2021 | 2022 | 2023 | 2024 | |
Discricionárias Executivo | 71,25 | 75,99 | 81,54 | 72,98 |
Emendas Individuais | 7,84 | 7,73 | 10,75 | 15,17 |
Emendas de Bancada | 5,89 | 4,15 | 3,89 | 5,17 |
Emendas de Comissão | 0 | 0,47 | 3,82 | 6,68 |
Emendas de Relator | 15,02 | 11,66 | 0 | 0 |
TOTAL PARTE DO CONGRESSO NACIONAL | 28,75 | 24,01 | 18,46 | 27,02 |
Agora sim! Em se tratando apenas do espaço fiscal disponível, obtém-se que o Congresso Nacional brasileiro definiu, nos últimos quatro anos, entre 18,46% e 28,75% do Orçamento Público naquilo que concerne às Despesas Discricionárias. As manchetes foram produzidas a partir de um estudo divulgado pelo Instituto Millenium, de autoria do economista Marcos Mendes. A comparação que gerou as manchetes que falavam em uma captura vinte vezes maior no Brasil do que nos países da OCDE foi gerada pela Tabela 2 daquele estudo. Conforme o autor coloca: “A Tabela 2 contém respostas para a seguinte questão: ‘no último ano fiscal, qual foi o montante total de alterações feitas pelo Legislativo no orçamento apresentado pelo Executivo?”. A partir de dados da OCDE, Marcos Mendes faz uma proxy com dados do FMI, para tentar se aproximar do que seriam as despesas discricionárias em cada país (ou seja, estimar aquilo que chamei aqui de espaço fiscal disponível). Ressalte-se que a utilização de bases de dados diferentes traz em si alguma dificuldade. Ocorre que sua Tabela 2 lista 30 países: Noruega, Austrália, Canadá, República Checa, Dinamarca, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Reino Unido, Bélgica, Espanha, Áustria, Turquia, Suíça, França, Finlândia, Coreia, Eslovênia, Portugal, Luxemburgo, Islândia, Estados Unidos, Eslováquia, Estônia. Desses, vinte e três são parlamentaristas (considerando entre eles a Turquia, que embora tenha elementos de um sistema presidencialistas, historicamente tem raízes parlamentaristas; e a Suíça, que tem um sistema peculiar de governo colegiado, mas é frequentemente classificada como parlamentarista pelos especialistas). A França e a Eslováquia são semipresidencialistas, com características próprias.
Entre países parlamentaristas, o processo legislativo orçamentário tem características próprias. Normalmente, o “Executivo” apresenta o Orçamento, e o Parlamento não faz emendas. Uma das características do modelo parlamentarista é a aceitação in totum da proposta orçamentária. A rejeição do Orçamento, na prática, significa um voto de desconfiança no governo. A capacidade de propor emendas ao Orçamento é bastante limitada. No caso britânico, por exemplo, apenas a House of Commons pode propor emendas e, mesmo assim, essas devem se limitar a instituir novos impostos ou autorizar novas despesas.
Esse fato explica o valor 0% de alterações feitas pelo Legislativo no Orçamento do governo central na Tabela 2 apresentada por Marcos Mendes, para os países: Noruega, Austrália, Canadá, República Checa, Dinamarca, Irlanda, Israel, Itália, Japão, Holanda, Nova Zelândia, Suécia, Reino Unido, Bélgica, Espanha. Também explica o -0,08 da Alemanha; o 0,01% da Áustria; o 0,03% da Turquia; o 0,06% da Suíça; o 0,09% da França; o 0,012% da Finlândia. Portanto, as conclusões derivadas do estudo de Marcos Mendes ficam parecendo um caso de seleção amostral, destinada a fazer os dados falarem sob tortura.
Não pretendo aqui afirmar que o processo legislativo orçamentário brasileiro é perfeito, muito antes pelo contrário, como se diz. Há muitos desafios e muito o que ser aperfeiçoado. Mas o assunto merecerá outra coluna.
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