Em 25 de março de 2024, o Senado brasileiro comemora seus 200 anos. Tendo sido criado pela Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador D. Pedro 1º. Esse momento marcou em definitivo a ruptura institucional com uma ordem articulada a partir das subserviências à Coroa Portuguesa, construindo uma institucionalidade que se propunha mais adequada à dinâmica das monarquias constitucionalistas vivenciadas por algumas nações europeias em meados do século 19.
Na prática, sabemos que, apesar dos ventos liberais que sopravam da Europa nesse período histórico, a recepção do Brasil de tais ideias não foi propriamente um encaixe. A Constituinte de 1823 foi dissolvida pelo imperador e, embora, alguns fundamentos do trabalho dos constituintes tenham sido mantidos, a verdade é que o poder do imperador não foi limitado, como na experiência da monarquia constitucional inglesa – por exemplo, e a escravidão foi mantida a despeito da liberdade de ir e vir e de ter seu próprio corpo serem fundamentos dos valores liberais que influenciavam as ideias da época.
Em 21 de março, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Internacional da Eliminação da Discriminação Racial, no ano de 1966. A data marca o massacre de Sharpeville, ocorrido em 21 de março de 1960, na África do Sul, onde 69 pessoas foram mortas a tiros pela polícia durante uma manifestação pacífica contra as leis de Apartheid (1948-1994). No Brasil, no ano de 2023, foi sancionada a Lei 14.519/2023, que institui o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.
O leitor ou leitora pode estar, a essa altura, se perguntando o que esses dois fatos têm em comum e em que medida eles impactam na atuação legislativa. Tentando responder, eu começarei afirmando que a Constituição de 1824 deixou uma lacuna que aprofunda e mantém desigualdades que se perpetuam na esfera pública brasileira. Em outras palavras, não tratar do tema da escravidão, silenciar – e tratou-se de um silêncio que envolveu tanto setores progressistas como os setores conservadores da sociedade de então – sobre tamanha questão social fez com que a condição de vida população negra se arrastasse por todo Império e adentrasse a República como uma condição marginal e subalterna.
Tais fatos irão fortalecer práticas de desigualdade que se materializam em indicadores sociais, mas, também em maus tratos e discriminações contra as pessoas negras. Episódios não nos faltam para identificar essa afirmação. Enquanto escrevo esse texto, passa pela minha cabeça as muitas matérias de jornal sobre entregadores de aplicativos que são chicoteados em praça pública, presos sem uma justificativa plausível ou violentados com tiros. Todas essas situações, me relembram os muitos castigos que homens e mulheres escravizados no Brasil Imperial, sob a vigência da Constituição de 1824, sofreram e, cujo fundamento jurídico para manutenção da escravidão era a compreensão de que pessoas escravas não eram portadores de direitos, mas, propriedades de seus senhores. Bens cuja serventia e tratamento ligavam-se à vontade de seu senhor ou senhora e não possuíam, nessa condição, direito à vida ou à liberdade.
Mas, o que fazer? Qual o papel do Senado em seu bicentenário de existência no tema das relações raciais na sociedade brasileira? Não há dúvida que muitas leis foram aprovadas por essa instituição, ao longo de sua existência, no sentido de reparar as mazelas da escravidão e construir um sentido de cidadania, considerando a equidade nas relações raciais no Brasil. Dentre as mais recentes, cito o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.228/2010), a promulgação da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, passando essa normativa a integrar o ordenamento jurídico nacional, a revisão da lei que institui cotas raciais e sociais para ingresso nas instituições federais de educação superior e de ensino técnico de nível médio (Lei 14.723/2023), entre outras.
Nas últimas semanas estamos assistindo a movimentações parlamentares e do Executivo em torno do PL 1.958/2021, que se destina a revisar e ampliar a Lei 12.990/2014 – cuja vigência expira em junho deste ano. O projeto foi proposto pelo senador Paulo Paim (PT-RS) e, inicialmente, previa a reserva de 20% de vagas para pessoas negras nos concursos públicos. Entre as emendas feitas pelo relator, senador Fabiano Contarato (PT-ES), ao texto inicial pode-se destacar: a) a ampliação do percentual para 30% da reserva de vagas para pessoas negras; b) desse percentual metade seria destinada às mulheres negras; c) a política terá duração de 25 anos; d) proposição de reserva de vagas para indígenas e quilombolas, sem definição de percentual, entre outras.
Pensando no festivo março e suas datas comemorativas e pensando como a Constituição de 1824 não foi capaz de enfrentar as mazelas da escravidão, quero concluir afirmando que o desafio de mais um centenário do Senado brasileiro está lançado e, certamente, ele se propõe a construir um futuro que busque cada vez mais aprofundar mudanças nas relações raciais brasileiras, melhorando e fazendo prosperar a vida de homens, mulheres, jovens e crianças negras. É esse o meu desejo.
Feliz 200 anos, Senado brasileiro!!
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