*Texto escrito em parceria com Luiz Felipe Costa Santana, mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo.
O ano de 2024 está quase chegando ao fim. Um ano marcado por muitas eleições, seja no âmbito municipal, seja pelo mundo afora. Uma questão que surge é como o resultado dessas eleições impacta a questão social, essa envolvendo direitos, garantias e políticas de trabalho, renda e cidadania e o que tudo isso tem a ver com os desafios legislativos? Assim, esse texto, de maneira muito breve, pretende refletir sobre aspectos dessa questão. Para tanto, externamos o que estamos entendendo por “metamorfose da questão social”, apontamos alguns dos resultados eleitorais recentes e, ao final, destacamos como esse cenário se liga a uma agenda legislativa, seja no nível nacional ou internacional.
O termo “metamorfose da questão social” é o título da obra de Robert Castel (2003) em que o autor se refere às mudanças nas condições de vida e trabalho, especialmente em relação ao salário e à vulnerabilidade dos trabalhadores. Castel analisa como novas formas de precarização e insegurança social têm emergido, afetando até mesmo os trabalhadores que possuíam certa estabilidade. Ele discute a transição de uma questão social focada na integração e direitos sociais para uma situação de ampla vulnerabilidade, onde as seguridades sociais estão em declínio.
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O leitor ou a leitora mais atento pode nos perguntar o que tudo isso tem a ver com processos eleitorais atuais? E, nós responderemos: Tudo!!!!, pois se houve um tema que permeou eleições seja aqui ou acolá foi a situação dos trabalhadores. Imigração, proteção e desproteção das economias, volta do Partido Trabalhista, no Reino Unido, ou o crescimento do Reunião Nacional de Marine Le Pen, na França, e o apelo fervoroso do candidato derrotado à prefeitura de São Paulo Pablo Marçal ao discurso do empreendimento como alavanca para superar a pobreza e tornar-se um milionário são aspectos que demonstram como o mundo do trabalho, ainda que não tão glamouroso e promissor como na segunda metade do século XX, ainda se mostra mobilizador de energias, propostas e imaginação capazes de dar centralidade a temas como bem-estar, dignidade e cidadania obtidas a partir de um ponto de vista que é o da classe trabalhadora.
Um giro pelas eleições do Reino Unido, França e Estados Unidos vão mostrar essa perspectiva. Depois de 19 anos da sua última eleição, no ano de 2005, o Partido Trabalhista (Labour) voltou a ganhar uma eleição geral no Reino Unido, levando-os ao poder depois de 14 anos de governo dos Conservadores (Tories). A legenda conquistou 412 assentos na Câmara dos Comuns contra apenas 120 dos Conservadores, que tiveram a maior derrota em sua história desde 1834. Trata-se de um contexto de degradação dos serviços públicos na administração tories, em especial o NHS (serviço de saúde público), políticas econômicas erráticas, crise nos preços causada pela inflação com raízes nas medidas restritivas da pandemia de Covid-19 e os sucessivos reveses da saída do Reino Unido da União Europeia no processo do Brexit. A volta dos trabalhistas ao poder na Inglaterra parece ter mais a ver com um descontentamento e um desgaste fragoroso dos conservadores e de suas políticas sociais e econômicas da cartilha neoliberal do que propriamente um alinhamento social ao partido trabalhista do século passado. Hoje, os trabalhistas representaram uma volta da preocupação com os serviços públicos, mas numa posição muito mais ao centro sob a liderança do líder partidário Keir Starmer, que foi capaz de levar o labour para uma posição menos sectária e mais pragmática. Uma questão que pode ser colocada é: serão os trabalhistas capazes de conciliar serviços públicos de melhor qualidade, com responsabilidade fiscal, controle da inflação e uma demanda social cada vez mais crescente por contenção dos fluxos migratórios, sem descaracterizar sua posição enquanto líderes no campo progressista?
Do outro lado do Canal da Mancha, nos meses de junho e julho deste ano, após a dissolução do parlamento francês pelo Presidente Emmanuel Macron houve eleições legislativas antecipadas na França. O motivo principal para essas eleições foi a força demonstrada por partidos de extrema-direita nas eleições para o parlamento europeu. O crescimento de partidos da direita radical, como o Reunião Nacional de Marine Le Pen, levou ao temor de que esse segmento político pudesse tomar o controle da Assembleia Nacional e passasse a governar a política doméstica francesa com a indicação de um primeiro-ministro. Essa foi uma manobra de alto risco para o presidente francês. Os resultados mostraram, porém, que a esquerda tradicional ainda manteve sua posição e barrou a vitória do Reunião Nacional junto com a coalizão centrista do presidente Macron, demonstrando a preocupação de uma parte da sociedade com as políticas polarizadoras de Le Pen, notadamente no que se refere à questão migratória. No entanto, políticas econômicas mais liberais do presidente francês, como a reforma previdenciária, também cobraram um custo alto para o campo progressista, com a divisão de muitos entre a esquerda refratária às políticas fiscalistas e a direita de tendência altamente protecionista e nacionalista reunida no campo de Marine Le Pen. Nesse sentido, a escolha do primeiro-ministro Michel Barnier da direita tradicional criou um governo de unidade bastante frágil, com a possibilidade de ser derrubado tanto pelo grupo do Reunião Nacional quanto pela esquerda tradicional da Nova Frente Popular, que reúnem 335 votos. Bastam 289 para uma moção de censura ao governo, já prevista para acontecer neste mês de dezembro.
E, por fim, as eleições americanas, que depois de uma série de reviravoltas durante o curso do período eleitoral, a qual foi da tentativa de assassinato quase bem-sucedida de Donald Trump a retirada da candidatura do presidente democrata Joe Biden e a ascensão de sua vice-presidente Kamala Harris como cabeça de chapa, os republicanos retornaram ao poder, levando não só a presidência, mas também retomando o controle da Câmara de Representantes e o Senado.
A campanha dos dois partidos foi bastante intensa e, no curso do período eleitoral, acirrada, especialmente após a saída do presidente Biden e a entrada da vice Kamala Harris. No entanto, o descontentamento do eleitorado com a economia americana, que nos últimos quatro anos experimentou índices de inflação altos, apesar da expansão do emprego, acabou pavimentando a vitória de Trump.
O partido democrata e o partido republicano polarizaram o debate, notadamente em temas como o direito ao aborto, a defesa das regras democráticas, o gerenciamento da economia e a intervenção americana em conflitos como o da Ucrânia e a Rússia. No entanto, o republicano conseguiu capitalizar as preocupações econômicas domésticas com um discurso bastante protecionista e nacionalista, típico do movimento MAGA (Faça a América Grande de Novo), inclusive em segmentos do eleitorado que nos últimos anos fizeram parte da base democrata, notadamente com eleitores masculinos, negros, sem escolaridade superior e em estados-chave para a vitória como Pennsylvania, Michigan e Wisconsin.
Face a esse conjunto de elementos é possível perceber que os processos eleitorais mundo afora recolocam com força total o sentido de políticas para o trabalho, a renda e a cidadania. A lição que fica para o Brasil, que vivenciou eleições municipais há dois meses e cujas propostas giraram em torno de renda, papel do Estado, desenvolvimento econômico e social para as cidades e muitas delas com objetivo de desconstituir o escopo mais protetivo da questão social – vide o apelo ao faça você mesmo (self made) engendrado pelo candidato Pablo Marçal, derrotado nas eleições da cidade de São Paulo.
Nesse contexto, parece que a agenda legislativa de 2025 terá que se ocupar da compreensão de que metamorfoses sociais são essas que engendram um conjunto de políticas econômicas e sociais capazes de trazer respostas para além do binômio mais ou menos atuação do Estado e promovendo cidadania que envolve aspectos de dignidade, renda, proteção social, diversidade, segurança e paz. Na prática, o velho e bom “bem-estar social” promovido por arranjos democráticos passados quase 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial.
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