Fiz uma aposta comigo mesmo. Escrevi num papelzinho e guardei debaixo do monitor do computador: “Aposto como a tropa de choque vai defender Bolsonaro depois da aprovação do relatório recorrendo à palavra da moda: ‘narrativa’. Vão dizer que Renan, Aziz, Randolfe, ou seja, o G-7 todo apenas tentou criar uma narrativa que não se sustenta, algo assim”.
Ganhei a aposta. Fui atrás dos relatórios paralelos e dos discursos dos integrantes da tropa de choque bolsonarista, senadores Luis Carlos Heinze, Marcos Rogério, Eduardo Girão, membros efetivos da CPI. E dos outros bolsonaristas que não eram efetivos mas tinham direito de assistir e até de fazer intervenções. TODOS, sem exceção, apelaram para a tal de “narrativa”, palavra-ônibus na qual cabe tudo e, portanto, é perfeita para encobrir falta de argumentos ou provas que desmintam cabalmente alguma acusação. Tal como a expressão inglesa “fake news”, fartamente empregada por Donald Trump diante de qualquer fato que o contrariasse, (e agora igualmente adotada pelos bolsonaristas como escudo protetor contra tudo o que possa ser levantado contra o duce). Na falta do que dizer diante da eloquência dos fatos, a saída é dizer que tudo não passa de uma “narrativa” para desacreditar o líder. Ou então que não passa de “fake news”, expressão que um assassino apanhado em flagrante com vídeos e testemunhas cometendo um crime numa rua da periferia de São Paulo usou ao ser conduzido pela polícia. Um repórter o interpelou e ele, numa pronúncia britânica de dar inveja, reagiu: “Fake news, tudo fake news!”
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De volta à CPI. A enxurrada de depoimentos ouvidos ao longo de seis meses de trabalho, juntamente com provas cabais, como declarações, fotos e vídeos do próprio Bolsonaro e de integrantes da CPI cometendo as maiores atrocidades, negando a eficácia das vacinas, desrespeitando o uso das máscaras , sem falar na montanha de documentos enviados à Comissão e anexados às mais de 1 mil páginas do relatório, são tão contundentes que não restou aos que que se prestaram ao papel infame de defender o indefensável. A não ser a apelação canhestra de que tudo aquilo – que o Brasil e o mundo acompanharam ao vivo e em cores – não passou de uma “narrativa” para desgastar a sacrossanta imagem do Messias que nos governa. Tudo fake news.
Se forem compulsadas as manifestações quase diárias dos integrantes da tropa de choque do governo, a impressão é a de que eles vivem numa realidade paralela. Toda vez que foram confrontados com algum depoimento vigoroso – como o dos irmãos Miranda – ou de documentos devastadores – como os dos laboratórios internacionais que comprovaram a decisão do governo de não adquirir vacinas, acreditando na eficácia dessa imbecilidade de tratamento precoce que denominaram de kit-covid, com uso da tal de cloroquina, que nem a ema do Palácio da Alvorada aceitou – o papo era exatamente o mesmo: tudo “narrativa”, tudo fake news.
Mas não é de estranhar, por isso foi fácil ganhar aquela aposta. Bolsonaristas, como qualquer raça de fanáticos, não trabalham no plano do racional, mas, apenas, obedecem bovinamente ao que lhes dizem para acreditarem. Agem passionalmente. E nada mais antitético à razão do que a paixão. Por isso, de nada adianta apresentar-lhes argumentos racionais ou provas cabais. Serão refutadas de pronto. Se alguém chegar exibindo provas contra Bolsonaro e sua tropa de malfeitores, ouvirá o “argumento” simplório de que tudo não passa de “invenção da imprensa”, ou de que “essas provas aí não valem nada porque foram produzidas por adversários do governo” e está acabado. Argumentações lógicas, baseadas em provas, indícios, evidências e depoimentos, são simplesmente rechaçadas como “narrativas” inventadas às quais não se deve dar crédito. Porque a palavra do Messias é definitiva, verdadeira e incontestável.
Enquanto a repercussão internacional do relatório coloca o Brasil de joelhos diante do mundo civilizado, a tropa de choque, que bem poderia ser chamada de “tropa de claque” insiste, pra garantir seus cargos, suas emendas, suas vantagens e outras prebendas, na “narrativa” de que tudo não passa de perseguição ao Messias. E que, já que foi eleito, merece concluir seu mandato. Mas, a que custo?
PublicidadeMais assustador ainda é como a maioria do Congresso, neste momento, vem assegurando a Bolsonaro o direito de continuar no cargo, de seguir cometendo toda sorte de desmandos e de mentir descaradamente, como fez em Roma ao dizer numa roda de compadres, ao dizer que seu governo “é bem avaliado” e que a economia “vai bem”. Bem avaliado por quem? Com inflação desenfreada, alta geral nos preços, combustíveis pela hora da morte e estagnação em praticamente todos os setores, a economia “vai bem” pra quem, cara-pálida? Pior: cometendo um crime atrás do outro, como foi o caso da live em que mentiu ao dizer que vacina transmite aids, contribuindo mais uma vez para afastar a população dos postos de vacinação e elevando o número de covas abertas para vítimas da covid. Mas o homem foi eleito, tem o direito de concluir seu mandato, não é mesmo?
Vivemos no presente. Por isso, aos que se resignam dizendo que “a história fará justiça”, é preciso advertir que a história mora no passado. E nós moramos neste agora-quando-aqui, em que dependemos da ação ou da inércia dos poderes públicos para estarmos vivos ou mortos. Em razão disso, os integrantes do atual Congresso, amarrados a compromissos escusos, não estão apenas exercendo livremente seus mandatos. São, isto sim, cúmplices da carnificina em que se converteu o governo Bolsonaro, por não utilizarem o remédio assegurado pela Constituição que garantiria o seu afastamento. E, como existem absurdos em nossa legislação como esse de deixar nas mãos de um único homem – Artur Lira, presidente da Câmara – a opção por abrir ou não abrir um processo de impeachment, que, se aprovado, abreviaria o sofrimento (mesmo com os abalos que sempre advêm desses processos de afastamento), é claro que valeria a pena ver Bolsonaro pelas costas. Pelas costas ou mofando em alguma prisão, para dar espaço a alguém com um mínimo de responsabilidade, capaz de mudar a direção do barco Brasil, que anda à deriva em mar revolto desde a posse. Ainda outro dia, a justiça eleitoral agiu que nem a mãe diante do filho malcriado. Ao julgar a prática de crimes de impulsionamentos em massa de fake news durante a eleição de 2028, os juízes quase proferiram aquela frase que muita gente já ouviu quando era criança: “Olhe aqui: mamãe viu, não gostou, ficou muito triste. Dessa vez a mamãe vai deixar passar. Mas não faça de novo não, viu? Senão mamãe zanga!” E ficou por isso. Assim, pelo jeito do Judiciário e do Congresso agirem e pelo rumo dessa prosa, permaneceremos na mesma toada até serem abertas as urnas de 2022, quando as pesquisas indicam possibilidade de mudança. Como, igualmente, existe o risco de saírem das urnas votos capazes de sustentá-lo à frente do Executivo por mais quatro anos, se até lá ainda houver Brasil. Como dizem os mineiros, eleição e mineração, só depois da apuração.
Ah, sim. Na qualidade de vencedor da aposta, ganhei uma rapadura e um prato de baião-de-dois. Do baião, só comi a metade. E da rapadura, só uma pontinha. Mas é melhor não acreditar. Deve ser tudo fake news, narrativa construída pra enganar gente boba, porque todo nordestino, como é meu caso, odeia baião-de-dois e não suporta rapadura, não é mesmo?
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O problema é que na pós-verdade não existe fato. Tudo é narrativa. Até a justiça condena por narrativa (vide a Rosa Weber e seu voto absurda sem provas, mas elegendo a narrativa).
Por isso que os denomino “torcedores de Bolsonaro”