Luiz Cláudio Carvalho *
Depois de trinta longos anos de discussões, debates, idas e vindas, o Brasil se aproxima do tão aguardado momento em que se fará justiça tributária (ou não), com a aprovação e promulgação da reforma tributária.
Durante esse longo período de maturação, a sociedade brasileira evoluiu em vários aspectos e involuiu em outros, mas o principal traço da nossa cultura acabou consagrado nos princípios que norteiam a PEC 45/19, conforme o texto aprovado no Senado da República, no início do mês de novembro: vamos aprovar a reforma que cristaliza o princípio de que “todos pagam impostos , menos eu!”.
Eu não devo pagar impostos porque sou eu quem mais emprega. Eu não devo pagar impostos porque sou eu quem mais exporta. Eu não devo pagar impostos porque sou eu quem mais gera renda…
Nossa cultura latina, passional, emocional, traz em si o forte traço narcisístico do culto ao “eu”. O “eu” estabelece relações sociais com base na afetividade das relações pessoais, com óbvias consequências nas relações de poder, sempre com o objetivo de trazer vantagens para si.
Mais importante do que “eu” não pagar impostos, é fundamental que os outros paguem. Aqui o “eu” se contrapõe aos outros. Os outros devem custear a máquina estatal lenta, perdulária e burocrática, mas necessária.
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O excesso de gastos do Estado brasileiro é problema dos outros, afinal eu devo me preocupar apenas com o fato de que eu não devo pagar impostos. Sobre esta lógica egoísta está calcada a nossa sanha pelos benefícios fiscais. Eu quero benefícios fiscais, porque eu não “posso” pagar impostos – por todos os motivos acima expostos –, mas os outros têm que pagar. A decorrência lógica deste raciocínio é que o detentor da prerrogativa de não pagar impostos têm para si uma vantagem competitiva incomensurável sobre aqueles que têm a obrigação de pagar. É enorme a relação de empresas, de todos os portes, que foram sólidas e competitivas em algum momento do passado, mas que sucumbiram à concorrência desleal trazida pela guerra fiscal entre os Estados brasileiros.
Pois bem – perguntarão os incautos –, a proposta de reforma tributária em discussão não se propõe justamente a acabar com as benesses tributárias direcionadas?
Não será proibida a guerra fiscal entre estados e Municípios, ou pelo menos tornada inócua economicamente, já que o imposto será cobrado integralmente no destino? Sim….. e não.
Como já vem sendo amplamente denunciado por vários interlocutores, inclusive por nós mesmos, várias são as exceções que constam da proposta aprovada no Senado da República, que trarão reduções na carga tributária para determinados setores econômicos. Gostaríamos de nos concentrar em apenas uma, a mais escandalosa de todas.
Está prevista a permissão constitucional à concessão de isenção dos tributos que serão criados – Contribuição sobre Bens e Serviços, de competência da União, e Imposto sobre Bens e Serviços, de Estados e Municípios – para as operações que ocorrerem na Zona Franca de Manaus e nas Áreas de Livre Comércio, localizadas nos estados da região Norte do país. Algumas exceções estão previstas, como a vedação à concessão de isenção para armas e munições, bebidas alcoólicas, automóveis de passageiros e produtos de perfumaria ou de toucador, mas não foi incluída a vedação à isenção na importação de combustíveis.
Dessa forma, o novo sistema tributário estabelecerá a possibilidade concreta de que a empresas sediadas na Zona Franca de Manaus ou em uma das cinco Áreas de Livre Comércio importem combustíveis derivados de petróleo ou biocombustíveis, como etanol de milho, sem o pagamento de nenhum centavo de CBS ou IBS, vendendo após para os demais estados da Federação com incomparável vantagem competitiva.
Além da enorme perda de arrecadação para todos os estados e os municípios, da ordem de 20% a 30%, todo o parque de refino e de produção de biocombustíveis estabelecido no país, de propriedade da Petrobras ou dos demais agentes privados, ficará economicamente inviabilizado, tornando o país absolutamente dependente da importação de combustíveis, uma estupidez do ponto de vista estratégico.
Para encerrar, cabe afirmar que nem no pior sistema tributário do mundo, o que atualmente vigora no Brasil, existe a possibilidade de importação de combustíveis sem o pagamento de impostos. Se o Brasil almeja construir um modelo de tributação simplificador, moderno, justo e equilibrado, desta vez o “eu” não poderá se sobrepor aos outros.
* Luiz Claudio Carvalho é sócio-fundador da BK Consulting e foi secretário da Fazenda de São Paulo e do Rio de Janeiro.
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