*Texto escrito em parceria com Raul Bonfim, Diretor de Monitoramento de Políticas Públicas da Secretaria de Planejamento do Piauí (Seplan-PI).
O controle das emendas orçamentárias continua a ser um dos temas centrais da política brasileira e, certamente, continuará a ser em 2025. O ano de 2024 foi marcado pela atuação mais incisiva do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de exercer controle sobre esses recursos, de forma a pressionar o Legislativo a estabelecer critérios mais claros e transparentes no uso dessas verbas. Isso resultou no congelamento do pagamento das emendas sob a justificativa de falta de rastreabilidade e transparência, com foco mais explícito sobre as emendas de comissão, que tem sido as mais questionadas pelo STF. Embora os repasses tenham sido retomados em dezembro, as condições impostas pelo STF mantêm o tema como uma questão sensível no relacionamento entre o Legislativo e o Judiciário, o que repercute também nas relações entre o Legislativo e o Executivo.
O pano de fundo é o crescente controle do Congresso Nacional sobre o orçamento público, algo que vem ocorrendo desde 2014 e 2015, quando houve a aprovação da Emenda Constitucional que estabeleceu a impositividade das emendas individuais. Posteriormente, outros dispositivos constitucionais foram alterados permitindo impositividade das emendas de bancada e a criação das transferências especiais (denominadas popularmente como emendas PIX), além da criação das RP-9, que se tornaram inconstitucionais a partir de decisão do próprio STF em dezembro de 2022.
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Além disso, o Legislativo tem ampliado o espaço das emendas no Orçamento da União e desmantelado parte dos instrumentos de planejamento, o que tem limitado, muitas vezes, a capacidade do Executivo de direcionar esses recursos para programas estruturantes já previstos do Plano Plurianual (PPA). Isso tem tornado uma parte significativa dos recursos orçamentários mais diluídos, com destino aos municípios controlados por prefeitos aliados. Esse poder é reforçado pelos frágeis mecanismos de controle e transparência no uso desses recursos.
Recentemente, temos acompanhado decisões do ministro do Supremo, Flávio Dino, que, ao longo do ano passado, bloqueou bilhões de reais destinados às emendas, insistindo na necessidade de regras mais rígidas de controle. O argumento é que o modelo atual de destinação de recursos de emendas de comissão pode estar ferindo os princípios constitucionais ao permitir indicações sem critérios claros e sem a aprovação formal pelos colegiados competentes.
A análise sugere que essas emendas podem estar sendo usadas como instrumentos para fortalecer o poder local de um pequeno grupo de lideranças do Congresso Nacional. Esse modelo de alocação de recursos enfraquece o caráter deliberativo das comissões e subverte a lógica coletiva que deveria orientar o financiamento de políticas públicas estruturantes.
É importante observar que as emendas de comissão ganharam destaque após a extinção do RP-9, conhecido como “emendas de relator”. Grande parte dos valores que anteriormente eram destinados às emendas de relator-geral foi realocada para essa modalidade. Entre 2022 e 2023, os valores autorizados para as emendas de comissão cresceram de R$ 493 milhões para R$ 7,5 bilhões (valores corrigidos pelo IPCA), representando um aumento impressionante de 1400%.
Em 2024, pela primeira vez, os valores autorizados para emendas de comissão superaram os destinados às emendas de bancada estadual, totalizando R$ 14,8 bilhões contra R$ 8,9 bilhões (valores corrigidos pelo IPCA). Esse cenário evidencia uma mudança significativa na dinâmica de alocação orçamentária e levanta questões sobre o impacto dessa redistribuição de recursos na formulação e execução de políticas públicas. Essa dinâmica se torna ainda mais evidente ao analisarmos o processo de execução dos recursos. As emendas de comissão corresponderam a 21% dos valores totais pagos (incluindo restos a pagar) das emendas orçamentárias do Congresso Nacional, superando, mais uma vez, os valores pagos para as emendas de bancada estadual.
Esse dado chama a atenção, sobretudo porque, ao contrário das emendas de bancada estadual, as emendas de comissão não possuem caráter de execução obrigatória. Apesar disso, o governo federal executou cerca de 57% dos valores autorizados para essas emendas, destacando sua crescente relevância no cenário orçamentário e reforçando a hipótese de que podem estar sendo estrategicamente utilizadas para fortalecer determinadas lideranças políticas no Congresso Nacional.
Em última decisão, de 30 de dezembro de 2024, Flávio Dino alegou que o Senado Federal não apresentou as atas de aprovação das indicações. Em sua decisão, questionou: “como empenhar uma ‘emenda de comissão’ cuja indicação do beneficiário e o valor a ser a ele repassado não foram aprovados pela Comissão? Esse controle pelo Colegiado Parlamentar não é um detalhe de menor importância, na medida em que todos os Senhores Senadores são iguais no que se refere ao emendamento no processo legislativo orçamentário. Como já mencionado em decisões anteriores, é incompatível com a Constituição Federal a existência de ‘voto de liderança’”.
A decisão reforça a postura do Judiciário e, particularmente, do ministro de não ceder em questões que comprometam a rastreabilidade e o controle do uso desses recursos públicos. Esse embate revela uma questão importante do ponto de vista político: a tensão entre a ampliação do poder do Legislativo sobre o orçamento e os esforços do Judiciário para garantir que essa prerrogativa seja exercida dentro dos limites constitucionais. E isso, de certa forma, pode respingar na relação com o Executivo, pois este também é um recurso político importante (mas não suficiente) para negociações com o Legislativo.
A novela orçamentária brasileira não é nova e nem chegará ao fim este ano. Mas esse novo capítulo, com a atuação mais substantiva do Judiciário no controle das emendas, tem adicionado um elemento na análise das relações entre os Poderes e também nas reconfigurações de regras visando mais transparência no uso dos recursos públicos.
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