Naquela que é considerada a eleição para presidente do Senado mais conturbada desde a redemocratização, em fevereiro de 2019, um irritado Renan Calheiros anunciou assim a retirada de sua candidatura ao posto: “Davi não é Davi. Davi é Golias. É o novo presidente do Senado”. Passados seis anos, o senador do União Brasil, Davi Alcolumbre, volta ao comando da Casa com ferramentas mais poderosas do que a pedra e o estilingue usados como arma pelo personagem bíblico, um franzino pastor de ovelhas que, anos depois, viria a ser o rei dos judeus.
Primeiro presidente do Senado brasileiro judeu, em 200 anos de história, Alcolumbre pode não ter o gigantismo de Golias, mas volta ao cargo com outra estatura, uma das mais elevadas da política brasileira.
Em sua primeira eleição, Alcolumbre se comprometeu a pacificar o Congresso. Com apoio maciço de senadores eleitos na esteira da Lava Jato e de Jair Bolsonaro, elegeu-se com 42 votos, apenas um a mais do que o exigido para a conquista em primeiro turno. De lá para cá, a política brasileira pode não ter encontrado a paz prometida, mas Alcolumbre ganhou a eleição com meses de antecedência. Aglutinou em torno de sua candidatura quase todos os partidos, do PT ao PL, passando pelo MDB de Renan Calheiros.
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Três Poderes
A bancada do União Brasil é a quarta em tamanho no Senado, com sete senadores. Ele se elegeu, em votação secreta, com apoio de 73 dos 81 senadores – a terceira maior votação da história. Apenas Eduardo Girão (Novo-CE) e Astronauta Marcos Pontes (PL-SP) insistiram em desafiá-lo no voto. Cada um recebeu quatro votos. Soraya Thronicke (Podemos-MS) e Marcos do Val (Podemos-ES) retiraram suas candidaturas durante o discurso de campanha.
Com bom trânsito nos três Poderes, Alcolumbre defendeu as prerrogativas do Congresso – que também será presidio por ele – no pronunciamento de campanha que fez na tribuna do Senado neste sábado. Mandou um recado para o Supremo Tribunal Federal (STF), mas também acenou para o Legislativo e o Executivo, cobrando o cumprimento de acordos.
“É essencial respeitar as decisões judiciais e o papel do Judiciário em nosso sistema democrático. Mas é igualmente indispensável respeitar as prerrogativas do Legislativo e garantir que este Parlamento possa exercer seu dever constitucional de legislar e representar o povo brasileiro. Estou falando do cumprimento dos acordos aqui firmados, porque sem confiança uns nos outros e sem a obediência ao que foi acordado, este Parlamento se transforma em um campo de guerra e as boas ideias se perdem numa eterna e infrutífera disputa entre antagonistas. Acordo firmado é acordo cumprido até que um novo acordo ou uma nova maioria pense diferente”, disse Alcolumbre.
Emendas parlamentares
O discurso foi feito em meio a episódios de tensão entre o Congresso e o Judiciário, sobretudo por causa da falta de transparência das emendas parlamentares. O senador chegou à primeira vez ao comando do Senado com o apoio do Palácio do Planalto, no início do governo de Jair Bolsonaro. À época era filiado ao DEM, que viria a se fundir ao PSL, em 2021, resultando no União Brasil. Em sua gestão, Alcolumbre ajudou o Executivo a aprovar pautas econômicas importantes e polêmicas, como a reforma da Previdência e a autonomia do Banco Central. Por outro lado, segurou pedidos de impeachment apresentados por bolsonaristas contra ministros do Supremo, evitando a escalada dos conflitos entre os dois Poderes.
Ainda durante seu mandato, o Congresso ganhou maior poder sobre o orçamento, o que ampliou sua influência tanto no estado quanto no Congresso. Nascia ali o chamado “orçamento secreto”, modelo que impedia a identificação dos autores e dos destinatários das emendas parlamentares e aumentava o poder dos presidentes da Câmara, do Senado e do relator do orçamento sobre a distribuição dos recursos. Desde então, as emendas ganharam nova roupa, mas as controvérsias em torno do assunto, com o Supremo, continuam.
Depois de ajudar a eleger Rodrigo Pacheco (PSD-MG) como seu sucessor na presidência do Senado, Davi retomou seu estilo discreto, evitando os holofotes da imprensa e negociando nos bastidores. Sua influência no governo Lula começou ainda na fase de transição, quando emplacou no ministério o ex-governador do Amapá Waldez Góes, do PDT, seu principal aliado local. Nos últimos dois anos, presidiu a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, mais uma vez, participou ativamente das articulações em torno da aprovação da reforma tributária.
“Casa de iguais”
Em seu primeiro discurso como presidente do Senado nesta tarde, Alcolumbre afirmou, assim como em fevereiro de 2019, que vai trabalhar pela pacificação política e que não “vacilará” na defesa das prerrogativas institucionais do Congresso, mesmo que tenha de desagradar ao Judiciário, ao governo, à mídia e ao mercado. “Nem sempre agradaremos a todos”, declarou.
O novo presidente do Senado defendeu que sua eleição faz parte de um “projeto coletivo” construído junto com os 73 senadores que votaram nele. “Esta Presidência, que não é apenas do Senado, mas também do Congresso, inicia, portanto, com a força somada das senadoras e dos senadores que apoiaram este projeto e que serão parte desta construção política e institucional”, discursou. “Quero reafirmar que nesta presidência seremos uma casa de iguais, em que cada senadora e senador terá voz e espaço, independentemente de sua ideologia ou orientação política”, acrescentou.
União dividido
Para a cientista política Joyce Luz, a ascensão de Alcolumbre ao Senado pode complicar a relação do governo com a Casa. “O União Brasil está mais distante dos partidos de centro-esquerda. O diálogo com o Executivo vai exigir um desgaste maior. Caso faça novas indicações para o STF e outros cargos que precisam passar pelo Senado, Lula precisará de diálogo maior com Alcolumbre”, explica. Lideranças nacionais do União Brasil, como o governador Ronaldo Caiado (GO) e o ex-prefeito de Salvador ACM Neto são inimigos históricos do PT e refratários a qualquer aproximação com Lula. Ex-senador, Caiado acompanhou de perto neste sábado a vitória do companheiro de partido.
Entre os candidatos que concorreram à presidência do Senado, Alcolumbre era aquele com a maior taxa de governismo, conforme a plataforma Radar do Congresso. Ou seja, ele é o candidato que mais votou de acordo com a orientação do governo nas pautas no plenário. Em 84% das votações, Davi Alcolumbre seguiu o governo na votação de projetos de lei e propostas de emenda à Constituição.
Origens
Filho de um mecânico de automóveis, David Samuel Alcolumbre Tobelem faz parte de uma família judia que migrou do Marrocos para o Brasil há mais de um século. O senador chegou a cursar a faculdade de Economia, mas abandonou o curso para se dedicar aos negócios da família.
Sua trajetória política começou em 2000. Aos 24 anos, elegeu-se vereador pelo PDT. Foi deputado federal de 2002 a 2015. Migrou para o PFL (futuro DEM em 2006. Com uma vaga em disputa em 2014, o ex-presidente José Sarney (MDB) desistiu de tentar a reeleição ao perceber o favoritismo de Alcolumbre nas urnas. Com a derrota anunciada, Sarney decidiu se aposentar após 70 anos de vida pública.
Em 2019, Alcolumbre desafiou o MDB novamente ao se lançar na corrida à presidência do Senado contra Renan Calheiros, eleito anteriormente quatro vezes para o cargo. Com um voto a mais que os 41 necessários, venceu em uma eleição marcada por voto “fantasma”, “roubo” de pasta, renúncias de candidatura e muita gritaria entre os parlamentares. E uma profecia política de Renan que se cumpriria neste sábado.
Relembre a confusão na primeira eleição de Alcolumbre:
Com 73 votos, Davi Alcolumbre é eleito presidente do Senado pela segunda vez