Em sua primeira semana de atividades, a nova Câmara demonstrou preocupação com um antigo problema: a violência sexual contra mulheres. Pelo menos seis parlamentares apresentaram cinco projetos de lei para estabelecer um protocolo de segurança para proteger mulheres e priorizar o atendimento de vítimas em casas noturnas, bares, restaurantes e estabelecimentos semelhantes.
A principal inspiração dessas propostas é o protocolo de segurança “No Callem“, que levou à prisão do jogador brasileiro Daniel Alves em Barcelona, na Espanha, após uma jovem de 23 anos denunciar que foi estuprada por ele em uma boate no final de 2022. Ele está preso sem direito a fiança desde 20 de janeiro e pode pegar até 12 anos de prisão.
Os projetos preveem que os estabelecimentos tenham um funcionário destacado para realizar atendimento às vítimas da violência sexual e prestem auxílio imediato, acionando as autoridades responsáveis. Propostas nesse sentido foram apresentadas entre quarta (1) e sexta-feira (3) pelas deputadas Dandara Tonantzin (PT-MG), Maria do Rosário (PT-RS), Maria Arraes (Solidariedade-PE), Sâmia Bomfim (Psol-SP) e Fernanda Melchionna (Psol-RS) – as duas em conjunto – e pelo deputado Duarte Junior (PSB-MA).
Registrado como PL 3/2023, o primeiro projeto de lei apresentado pela deputada Dandara na Câmara institui o “Selo Não é Não – Mulheres Seguras”, a ser destinado a casas de festas, discotecas, boates, bares, restaurantes, lounges, clubes, hotéis e demais estabelecimentos e ambientes de entretenimento e diversão que cumprirem os requisitos de garantia de segurança a mulheres.
A proposta abarca formas de prevenção e ação nos casos de crimes contra a dignidade sexual como: estupro, beijos e caricias forçadas, ou a importunação insistente e obsessiva (chamada de “stalking“). Os estabelecimentos devem escolher uma funcionária, do sexo feminino, para prestar apoio à vítima e levá-la para um espaço privado, longe do agressor, para o acolhimento. O documento também traz recomendações de como agir com o suspeito das agressões.
Medo da violência
PublicidadeSegundo Dandara, há uma lacuna na legislação a respeito das leis sobre violência sexual no Brasil, que necessita ser preenchida. “Uma a cada cinco mulheres no país possui medo de sofrer violência sexual. Atualmente as mulheres não se sentem seguras nos ambientes de lazer, como casas de shows e bares. Nosso objetivo é não deixar a cargo do estabelecimento o que deve ser feito, mas obter um preparo estabelecido pelo meio legislativo para que os funcionários saibam agir e amparar as vítimas nos casos de violência sexual. As mulheres devem se sentir seguras nos lugares que frequentam ”, defende a deputada de 28 anos, estreante na Câmara.
“Estou feliz de apresentar essa proposta, pois estamos propondo uma solução legislativa para este problema. Precisamos de leis mais simples, justas e fáceis de serem colocadas em prática. Sou uma jovem mulher preta que busca pela equidade e segurança da população”, afirmou a parlamentar.
Representante do PT na Mesa Diretora, Maria do Rosário é autora do PL 3/2023, que estabelece o “Protocolo Não é Não” para atender mulheres vítimas de violência sexual ou assédio em discotecas, eventos festivos e esportivos profissionais, bailes, espetáculos, shows, bares, restaurantes, ou qualquer outro estabelecimento com grande circulação de pessoas. O texto da deputada gaúcha cria um código para mulheres e outras pessoas alertarem os funcionários sobre a agressão sexual.
Maria do Rosário destaca que há uma preocupação crescente com a violência sexual em espaços públicos e, ao mesmo tempo, uma tentativa de se banalizar esse tipo de crime por razão de gênero.
“Pesquisas de opinião, como ‘Bares Sem Assédio’, promovida por uma marca de bebida, e amplamente divulgada no ano de 2022, detectou que cerca de dois terços das brasileiras entrevistadas relatam já terem sofrido algum tipo de assédio em bares, restaurantes e casas noturnas, número que sobe para 78% quando incluídas as trabalhadoras nestes locais; 53% das entrevistadas já deixaram de ir a um bar ou balada por medo de assédio e apenas 8% frequentam regularmente este tipo de estabelecimento sozinha. Cerca de 13% nunca se sentem seguras nestes ambientes e 41% só se sentem mais confortáveis na presença de um grupo de amigos”, justifica a deputada.
Um estupro a cada dez minutos
No ano de 2021, o Brasil registrou 56.098 boletins de ocorrência de estupros, incluindo vulneráveis, apenas do gênero feminino. Esse número representa que a cada dez minutos, uma menina ou uma mulher foi vítima de estupro, contabilizando apenas os casos que chegaram até as autoridades policias. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022, nos primeiros cinco meses do ano, segundo a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registradas 7.447 denúncias de estupro no Brasil.
O protocolo espanhol foi implementado na cidade de Barcelona, em 2018, para coibir agressões sexuais e violência machista em espaços de lazer na cidade, como casas de show e bares. Os locais ganham treinamento e acompanhamento para a aplicação das medidas específicas de combate a violência de gênero.
Por volta de 40 locais da capital catalã aderiram ao procedimento, que voltou a ser reativado no final de 2022, após pandemia. O protocolo também é seguido em Madri e outras cidades espanholas.
“Foi a existência deste mecanismo e a adesão da Discoteca Sutton [em Barcelona] ao mesmo, o que assegurou à jovem de 23 anos ser retirada de imediato do local e levada de ambulância para exame de corpo de delito, ser observada por câmeras, ser atendida prontamente, ser protegida de possíveis novas agressões, ser acolhida para possíveis impactos sobre sua saúde integral. O objetivo do protocolo é proteger a vítima e prevenir episódios, mas também se estende à responsabilização do agressor, ao acionar o sistema de segurança pública”, observa Maria do Rosário.
Não se calem
Segundo a deputada, há um consenso de que, sem o protocolo “No Callem“, dificilmente a jovem teria obtido sucesso na busca por Justiça. “Foram os procedimentos que garantiram a existência de provas e testemunhas, e a certeza de que estavam agindo dentro da lei”, avalia parlamentar gaúcha.
O episódio está inspirando a apresentação de projetos de lei no Brasil nas esferas municipais, estaduais e federal para assegurar mulheres em espaços privados de diversão. Em São Paulo foram apresentados dois projetos do mesmo teor na Câmara Municipal, um foi protocolado pela Bancada Feminista do Psol, na segunda-feira (30), já o outro é de autoria da vereadora Cris Monteiro (Novo-SP), na terça (31).
Para Sâmia Bomfim e Fernanda Melchionna, é necessário estabelecer um protocolo avançado no tratamento do tema da violência contra a mulher em espaços de lazer para que nenhuma mulher se cale ou seja calada quando assediada ou violentada em casas noturnas, bares, restaurantes e estabelecimentos semelhantes. O PL 100/2023, de autoria das duas deputadas, institui o protocolo “Não se Calem”, determinando procedimentos de prevenção e atendimento às vítimas.
Entre outras medidas, o texto prevê a instalação de placas de conscientização e acesso aos meios de denúncia, canal virtual e físico para relatar os casos, vigilância especial em áreas de baixa iluminação, isolamento ou qualquer outra condição que facilite a vulnerabilidade física da pessoa.
O PL 14/2023, de Maria Arraes, estabelece o Protocolo de Apoio às Vítimas de Violência Sexual, que constitui na implementação de uma série de ações a serem adotadas em eventos e estabelecimentos comerciais que prestam serviço de bar, restaurante e casa noturna, com intuito de garantir a proteção e os direitos da vítima. “É dever do Congresso Nacional e de seus membros a proteção dos cidadãos, a coerção ao aumento dos casos de violência sexual, o combate à impunidade e a fiscalização da responsabilização pelo descumprimento de nossas leis”, defende a deputada.
Instrução a homens
Único homem a apresentar projeto nesse sentido, o PL 12/2023, Duarte Júnior alega que é preciso dar atenção prioritária e imediata à vítima de agressão. O deputado propõe que o estabelecimento comercial armazene por, no mínimo 90 dias, as gravações do sistema de câmeras de segurança do local. As imagens devem ficar disponíveis às autoridades policiais quando solicitadas. Para Duarte, além da legislação, é preciso mudar a cultura no país em relação à violência sexual contra as mulheres por meio da conscientização de homens.
“É sistematizando atos de conduta e instruindo os homens no meio familiar e educacional, nos espaços de poder, como mercado de trabalho e política, nos espaços de sociabilidade, sejam bares, restaurantes e congêneres que esta legislação vigorará para garantir o acolhimento e proteção da mulher”, considera o deputado maranhense.
Da apresentação de um projeto até sua transformação em lei há uma grande distância, que pode ser encurtada pela chamada vontade política dos parlamentares. Nessa caminhada, o projeto de lei precisa passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e outros colegiados antes de seguir, conforme o caso, para o plenário. Depois de passar pela Câmara, os textos serão submetidos ao mesmo processo no Senado. Após ser aprovado pelas duas casas, o projeto precisa ser sancionado pelo presidente da República para ser convertido em lei.
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