Michelli Possmozer *
A tramitação do projeto que originou a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para o ano de 2024 foi um tanto controversa. O que se espera nesse tipo de proposição são debates em torno da finalidade do orçamento anual da União para questões prioritárias, como saúde, educação e segurança pública. No entanto, a maioria dos parlamentares estava mais preocupada em garantir que o dinheiro público não fosse usado para cirurgias de troca de sexo em crianças e ações que extinguissem o conceito tradicional de família.
Quem acessar o texto da Lei nº 14.791, no artigo 185, vai observar que os recursos do governo federal não podem ser usados para financiar: “invasão ou ocupação de propriedades rurais privadas”; “ações tendentes a influenciar crianças e adolescentes, da creche ao ensino médio, a terem opções sexuais diferentes do sexo biológico”; “ações tendentes a desconstruir, diminuir ou extinguir o conceito de família tradicional, formado por pai, mãe e filhos”; “cirurgias em crianças e adolescentes para mudança de sexo”, e “realização de abortos, exceto nos casos autorizados em lei”. Todos esses dispositivos, por si só, são incabíveis e não têm fundamentação técnica ou jurídica. Mas a principal questão é: por que trazer a discussão da pauta dos costumes para uma lei orçamentária?
O protagonista neste cenário de disputas ideológicas é o deputado federal Eduardo Bolsonaro, que elaborou uma emenda, solicitando a inclusão desse artigo. Inicialmente, essa proposta de reforma foi aprovada pelo voto favorável de 305 deputados e 43 senadores, mas depois foi reprovada no texto do veto presidencial. No último dia 28 de maio, os vetos do presidente Lula foram à votação no Congresso Nacional e o veto à emenda de Eduardo Bolsonaro foi derrubado pela maioria. Dos 386 votos contrários ao veto, 199 foram de membros da Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Sendo responsável por pouco mais de metade dos votos, é possível afirmar que o peso desta frente nas votações é bastante considerável e, quem dirá, decisivo.
A FPE, na atual legislatura, possui 238 membros: 213 deputados e 26 senadores. A filiação partidária desses parlamentares é bem diversa: quatro deles são do Avante; 15, MDB; três, Novo; quatro, PDT; 81, PL; seis, Pode; 15, PP; dois, PRD; quatro, PSB; 18, PSD; 15, PT; 46, Republicanos; um, Solidariedade; 24, União, e um, PSDB. Seguindo a classificação do espectro ideológico dos partidos brasileiros feita por Bruno Bolognesi, Ednaldo Ribeiro e Adriano Codato, cerca de 90% desses parlamentares têm um posicionamento mais à direita. Nem todos os membros desta frente são cristãos, pois, desde 2015, a FPE aceita membros não evangélicos. Essa aliança entre parlamentares deste segmento e conservadores fortaleceu a pauta dos costumes dentro do congresso nacional e tem sido fundamental para a aprovação de matérias de cunho ideológico.
A sessão do dia 20 de dezembro de 2023, quando ocorreu a primeira votação para a emenda de Eduardo Bolsonaro, ilustra muito bem esse cenário. Os deputados receberam a orientação de voto dos líderes da bancada de seus partidos e as justificativas em favor do voto faziam parecer que o objetivo do atual governo é destruir a família, acabar com a propriedade privada, sexualizar as crianças e assassinar fetos. Inclusive, foi a partir dessa retórica que a extrema-direita captou milhões de votos para Bolsonaro em 2018 e 2022 por meio da difusão de notícias falsas, envolvendo a esquerda dita comunista. E esse enunciado continua sendo mobilizado como estratégia para as eleições municipais deste ano.
A inclusão desta emenda na LDO de 2024, além de desviar o debate de questões fundamentais dentro de uma lei orçamentária, reforça no imaginário social estereótipos atribuídos à esquerda no Brasil. É a tentativa de criminalizar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e de impedir a aprovação de qualquer política pública que garanta direitos à comunidade LGBTQAPN+. Eduardo Bolsonaro e seus aliados sabem muito bem o que estão fazendo ao criarem textos jurídicos que à primeira vista não fazem sentido, mas que ganham significados no campo discursivo e ecoam de forma muito efetiva nos ouvidos de seus eleitores.
Nesse contexto, o conceito de ideologia segundo o intelectual italiano Antonio Gramsci cabe muito bem para entender a atuação da FPE. Mais do que um conjunto de ideias falsas, a ideologia para esse autor traduz a visão de mundo que um grupo social deseja incutir na sociedade. E essa concepção da realidade tem como fundamento preceitos bíblicos, que são normalizados como norteadores do comportamento social e das leis por meio do consenso junto aos demais grupos e à sociedade. A FPE vem conseguindo apoio no congresso nacional, pois, além de sua visão de mundo refletir ideais conservadores, esta frente busca atuar para atender também a interesses neoliberais, como ocorreu na LDO ao se defender a propriedade privada, a fim de conquistar o apoio da bancada do agronegócio.
Nesse sentido, dos 518 parlamentares, 386 – ou seja, 74% – votaram a favor da inclusão de uma emenda na LDO sem fundamentação técnica ou jurídica, mas carregada de viés ideológico e intenções alinhadas com o projeto de poder da FPE. Isso significa que esta frente vem trabalhando incansavelmente para convencer os demais deputados e senadores de que os seus interesses representam os interesses de todos para, assim, alcançar a hegemonia, estabelecendo-se como liderança intelectual e moral, como dizia Gramsci. Há quem subestime o poder de articulação dos parlamentares evangélicos e seus aliados, por considerar “inofensiva” a pauta dos costumes. No entanto, temas do campo moral e religioso, como “ideologia de gênero”, já chegaram na lei orçamentária e vêm pautando o cotidiano das votações e audiências no Congresso Nacional. Não se trata somente de levantar a bandeira “Deus, pátria e família”. É um fazer político organizado e que vem ganhando cada vez mais corpo e organicidade à medida que candidatos evangélicos vão ocupando espaços no Legislativo, no Executivo e no Judiciário. Embora existam grupos que se contrapõem ao movimento neoconservador que vem se estabelecendo no Parlamento, eles não parecem ter força política suficiente para competir com a FPE, cuja atuação ganha contornos cada vez mais definidos de um projeto de hegemonia.
* Michelli Possmozer é doutora em Sociologia Política, Mestra em Ciências Sociais e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Possui experiência como repórter de jornal impresso, comunicação institucional e pesquisas nas áreas de Religião e Política, Sociologia Urbana, Sociologia da Violência, Desenvolvimento Urbano e Políticas Públicas.
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