Conta a história do fechamento precoce da primeira Assembleia Nacional Constituinte que o deputado Antônio Carlos de Andrada fez uma mesura diante de um canhão, saudando “Sua Majestade, Dom Pedro I”. O tempo passou e, na atualidade, a cada início de ano legislativo, há uma sessão cerimonial, que inclui uma salva de 21 tiros de canhão, em homenagem à retomada dos trabalhos do Poder Legislativo. O fato de o mesmo canhão ser símbolo da decisão ditatorial, no primeiro caso, e da celebração da democracia, no segundo, ajuda a compreender a riqueza e a importância dos símbolos e seus sinais para uma correta leitura política.
Nesse momento, tradicionalmente são pronunciadas mensagens, solenes, em nome dos Poderes da República. Essas, usualmente, trazem relatórios do ano que passou e indicativos do que será prioridade no ano de trabalhos que se inicia. Porém trazem também símbolos e sinais, para degustação e digestão dos ouvintes. Na linha do ditado, para bom entendedor, pingo é letra.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin, falando em nome do Poder Judiciário, abriu sua fala adjetivando o Congresso Nacional como o templo da democracia. Nos templos cultuam-se seres invisíveis, supostamente presentes, mas nunca vistos. A existência dos deuses é uma questão de fé, portanto. Se Fachin enxerga a democracia como algo que não existe, porém deve ser cultuada, ou como algo que depende, fundamentalmente, da crença das pessoas, não fica claro. Mas é fato, já destacado brilhantemente por Alexis de Tocqueville, que a adesão das pessoas ao sistema democrático gera um bom funcionamento da democracia que leva, por sua vez, a um melhor funcionamento do sistema democrático, em um ciclo virtuoso. Quiçá Fachin enxergue em 2024 bons augúrios para impulso dessa roda virtuosa.
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Diplomaticamente, porém de modo explícito, Fachin deixa o recado do Judiciário ao poder vizinho: “o papel do Judiciário é mais singelo, ainda que não menos relevante: zelar pela verdade dos compromissos aqui firmados, a começar pela nossa Constituição”. Frase brilhante, insinuando o papel da Corte Suprema como guardiã da Constituição, ao mesmo tempo em que sintetiza a necessidade de que os compromissos sejam firmados em “verdade” e na “verdade” – inclusive a “verdade constitucional”, que deve prevalecer. De um modo muito sutil e elegante, o Ministro conseguiu, assertivamente, informar sobre como o Poder Judiciário se compreende e pretende seguir se posicionando: uma exortação, em tom de admoestação, temperada pela leveza das palavras.
Mas Fachin prosseguiu a dar conselhos, claramente ligados aos fatos vivenciados pelo país nos últimos anos. “Cabe primeiramente à Política resolver as crises políticas”, ou seja, muito do que tivemos que decidir foi por conta da impotência do Congresso em cumprir seu papel como câmara de compensação dos múltiplos interesses existentes na sociedade. Em relação ao Supremo, houve da parte do Congresso muitos “venha a nós”, sempre seguidos de outras tantas críticas ao “vosso reino”.
Além de tudo, Fachin apresenta a solução: que a política reencontre a Política como vocação – o sacrifício dos interesses em nome do bem comum. Esse seria o caminho para a superação de convicções pessoais e ideologia calcificadas. Bem interessante a mensagem do Supremo, que, infelizmente, recebeu bem menos atenção da mídia do que as demais.
O presidente do Senado Federal, falando como se estivesse ainda acuado, clama que “mais do que nunca se faz necessário o fortalecimento da autonomia parlamentar. Proteger os mandatos parlamentares é proteger as liberdades”. Deixou implícito e aberto a especulações o proteger de quem? Proteger do quê? Em contrapartida, como que se recuperando de um passo em falso, registra solenemente que o “Congresso Nacional é o principal bastião da defesa da democracia brasileira”. Haverá controvérsias, por certo, sobre essa titularidade, principalmente entre os analistas políticos que se debruçaram sobre os últimos anos.
Seguiu anunciando prioridades legislativas, não tendo pudores em listar, entre elas, aquelas com impacto imediato no Poder do lado: “discutiremos temas muito relevantes, como decisões judiciais monocráticas, mandatos de ministros do Supremo Tribunal Federal e reestruturação de carreiras jurídicas“. Segundo o presidente do Congresso, em 2024, finalmente “trabalharemos para aprimorar a maneira como atuam os Poderes da República, inclusive os Poderes Executivo e Judiciário”. Aprimoramento nos olhos dos outros é refresco.
O presidente da Câmara dos Deputados fez a fala mais comentada. Na linha de Pacheco, porém puxando a sardinha para o seu lado, afirmou que “a Câmara dos Deputados é o mais democrático dos Poderes da República”. “Logo após as urnas se pronunciarem fomos o primeiro Poder a reconhecer seu resultado”. Em ambas as afirmações, salta aos olhos a unilateralidade de se afirmar a Câmara dos Deputados como um Poder específico, como se o sistema brasileiro fosse unicameral.
Proativo, o presidente Arthur Lira seguiu com a parte mais mencionada de seu discurso: “Errará, insisto, errará grosseiramente qualquer um que aposte numa suposta inércia desta Câmara dos Deputados neste ano de 2024.” “Errará ainda mais apostar na omissão desta Casa – que tanto serve e serviu ao Brasil – em razão de uma suposta disputa política entre a Câmara dos Deputados e o Poder Executivo”. Posto dessa forma, fora de contexto, o tom de fato parece um pouco acima do usual para mensagens solenes dessa natureza. As frases, entretanto, foram antecedidas por uma prestação de contas dos trabalhos da Câmara no ano que se findou, apresentando a quantidade de entregas realizadas à sociedade. O corolário seria, portanto, que a Câmara seguirá sem se render à inércia. Sem pretender assumir aqui o papel de ingênuo, apenas destacando como a construção discursiva tem poderes para dizer além ou aquém do que se quer dizer. A interpretação do som do tiro de canhão caberá a cada um: sempre haverá quem julgue serem apenas fogos de artifício. Mas a mensagem foi clara: “Não subestimem esta Mesa Diretora! Não subestimem os membros desta legislatura!”.
O presidente da Câmara seguiu dando ênfase a uma questão central para o atual momento: a cola de nosso combalido presidencialismo de coalizão – os acordos firmados e o cumprimento da palavra empenhada. Lira se colocou como fiel à boa política e ao cumprimento de todos os ajustes firmados. E se manifestou pela natural contrapartida do respeito às decisões e o fiel cumprimento dos acordos firmados com o Parlamento. Sutilmente distinto de Fachin, que citou os acordos no parlamento. Pragmaticamente, Lira fez menção ao lado operacional da política brasileira desde 1988, quer seja, o estado de permanente negociação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo como forma de se assegurar uma boa governança.
Sem querer deixar o tópico para as entrelinhas, Arthur Lira destacou a participação da Câmara dos Deputados na concepção [o orçamento não é e nem pode ser de autoria exclusiva do Poder Executivo] e no direcionamento da execução do Orçamento Público [a burocracia técnica não foi eleita para escolher as prioridades da Nação]. Em uma síntese poderosa, o presidente da Câmara afirma: “quanto mais intervenções o Congresso Nacional fizer no Orçamento, tenham certeza: mais o Brasil esquecido será ouvido”. A frase em si enseja outra coluna.
O presidente Lula enviou uma mensagem protocolar, praticamente um prefácio a um documento robusto com tons de relatório e pretensões de diretrizes futuras. Brevemente, ressaltou a importância da união entre os poderes no momento em que a democracia foi ameaçada: “Os Três Poderes em Brasília e em toda a Federação – se uniram e declararam em uma só voz que nossa Constituição é soberana. E que nunca mais o Brasil aceitará desvarios autoritários”. Mas, em linha com boas mensagens, de um ponto de vista discursivo, sintetizou o espírito que pretendeu imprimir às suas palavras na primeira frase do seu texto: “O ano de 2023 pode ser resumido em uma frase: nunca se fez tanto pelo nosso povo em tão pouco tempo”. Aristóteles já nos dizia que as palavras ditas são símbolos da experiência mental, de onde podemos deduzir que essa é a realidade experenciada pelo Presidente da República no início deste segundo ano de seu terceiro mandato.
A depender do valor das mensagens enunciadas no início do ano legislativo, se a tradução da realidade em símbolos foi bem realizada, podemos fazer nossos cálculos e esperar que essas verdades do mundo real gerem outras tantas. Como dizia Aldous Huxley: “as palavras são tomadas pelas coisas, e os símbolos, usados como medida de realidade”. Nesse sentido, houve muito a colher da salva de palavras da sessão inaugural do ano legislativo.
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