Ronaldo Christofoletti *
A PEC 03/2022, conhecida como “PEC das Praias”, foi pautada de forma inesperada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado para esta quarta-feira, dia 4 de dezembro de 2024. Esta proposta já havia gerado um intenso debate em maio de 2024, mobilizando a sociedade civil, academia, celebridades e representantes do governo. No entanto, sem que houvesse um consenso ou debate público suficiente, a votação foi adiada naquele momento. Agora, sem nenhuma discussão adicional, a PEC volta à pauta em um contexto de distração pública, com atenções voltadas para o pacote econômico e a crise política.
Entendendo o cenário da PEC das Praias
A PEC 03/2022 propõe mudanças significativas na propriedade e gestão dos terrenos de marinha no Brasil, áreas definidas como faixas de 33 metros a partir da linha média das marés altas. Tradicionalmente, essas terras pertencem à União e são protegidas por regras específicas, incluindo cobrança de taxas como foro, taxa de ocupação e laudêmio. A proposta busca transferir a posse desses terrenos para estados, municípios ou particulares que já os ocupam, eliminando essas cobranças.
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Os defensores da PEC argumentam que ela poderia impulsionar o desenvolvimento econômico em regiões costeiras, regularizando ocupações antigas e promovendo novos empreendimentos. No entanto, a proposta apresenta uma série de fragilidades, especialmente no que se refere à conservação ambiental e à adaptação climática. Além disso, o modelo econômico que sustenta a PEC é ultrapassado, beneficiando uma pequena parcela da população e ignorando todos os avanços recentes sobre o desenvolvimento sustentável e os desafios impostos pelas mudanças climáticas.
1. O papel dos terrenos de marinha na defesa climática
Estamos vivendo em um contexto de rápida mudança climática. O ano de 2023 foi o mais quente já registrado, e 2024 já está em caminho de superar essa marca. Com temperaturas globais atingindo 1,5°C acima da média pré-industrial, o planeta enfrenta uma série de eventos extremos. Entre eles, podemos citar inundações severas no Rio Grande do Sul, enchentes catastróficas na Espanha, Índia e Bangladesh, além de inundações em cidades costeiras como Portland, nos Estados Unidos.
Esses fenômenos são exacerbados por um “oceano febril”, que permanece em temperaturas recordes há mais de 18 meses. Esse aquecimento contribui para o derretimento acelerado das calotas polares, resultando em um aumento do nível do mar que afeta diretamente as zonas costeiras de todo o mundo. Segundo a UNESCO, a taxa de aumento do nível do mar dobrou nos últimos 20 anos, agravando os riscos de erosão, ressacas e alagamentos.
No Brasil, diversas regiões costeiras já sofrem com a erosão e o aumento do nível do mar, incluindo estados como Amapá, Pará, Ceará, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (para outros eventos da última década, veja a linha do tempo a partir da página 20 na publicação sobre Soluções baseadas na Natureza lançada na COP29). Terrenos de marinha desempenham um papel crucial nesse cenário, atuando como barreiras naturais contra esses impactos. Eles protegem as cidades costeiras, amortecem a força das ondas e ressacas e preservam ecossistemas vitais, como manguezais e restingas.
No entanto, a PEC das Praias ameaça essa proteção ao abrir caminho para a urbanização das áreas nos terrenos de marinha. O relator da PEC, senador Flávio Bolsonaro, argumenta que os terrenos de marinha perderam sua relevância histórica como defesa territorial contra invasões estrangeiras. Mas, enquanto a segurança militar pode não ser mais uma preocupação, a “invasão” pelo aumento do nível do mar certamente é. Urbanizar essas áreas é enfraquecer nossa capacidade de adaptação climática em um momento em que ela é mais necessária do que nunca, e os terrenos de marinha são nosso patrimônio natural de defesa e devem ser mantidos em benefício de toda a sociedade brasileira.
2. Quem pagará a conta dos impactos?
A urbanização das áreas costeiras, incentivada pela privatização dos terrenos de marinha, cria um ciclo de vulnerabilidade e custos. Grandes empreendimentos, como condomínios e resorts, podem ser construídos nessas áreas, mas quando forem atingidos por erosão ou inundações, quem arcará com os custos? A experiência mostra que o poder público frequentemente é chamado para mitigar os danos, canalizando recursos que poderiam ser investidos em soluções preventivas e sustentáveis.
Esse ciclo é prejudicial para a sociedade como um todo. Primeiro, as defesas naturais, como dunas e vegetações costeiras, são removidas para dar lugar a construções privadas, de posse de uma mínima parte da população que, na maioria dos casos, a explora comercialmente. Em seguida, quando os impactos climáticos se intensificam, o poder público é pressionado a investir em obras de proteção, como barreiras artificiais e dragagem, para proteger estes empreendimentos privados. Assim, a sociedade paga duas vezes: pela perda dos serviços ambientais gratuitos e pelos custos de mitigação.
3. Povos tradicionais e os impactos da PEC das Praias
Os terrenos de marinha desempenham um papel fundamental na preservação de territórios tradicionais ocupados por povos indígenas, comunidades pesqueiras e outros grupos que vivem em harmonia com a natureza. A PEC 03/2022 ameaça esses territórios ao permitir sua privatização, fragilizando sua proteção legal e aumentando a vulnerabilidade dessas populações.
Os conflitos fundiários podem aumentar, uma vez que a privatização pode aumentar disputas por terra entre agentes econômicos e comunidades tradicionais, que já sofrem com invasões e perda de seus territórios. Como os agentes econômicos possuem maior influência política, a descentralização proposta pela PEC para Estados e municípios e a desigualdade do diálogo com os diferentes setores da sociedade poderá acarretar em ameaças culturais, sociais e risco à biodiversidade.
Áreas costeiras essenciais, como manguezais e restingas, que são protegidas por esses povos, podem ser destruídas por empreendimentos urbanos. Os modos de vida e as culturas dessas comunidades dependem diretamente da preservação dos ecossistemas em que habitam.
4. Privatização das praias: realidade ou mito?
A PEC das Praias não propõe, em teoria, a privatização das praias, que permanecem bens públicos de uso comum, com acesso garantido pela Constituição. Contudo, na prática, a realidade é diferente. Ao longo do litoral brasileiro, condomínios e resorts já dificultam o acesso público, seja por meio de portarias, preços proibitivos ou seguranças que inibem visitantes que não estão hospedados.
Além disso, a privatização dos terrenos de marinha pode levar a um modelo de desenvolvimento econômico que amplifica a desigualdade social e reduz os benefícios coletivos. Grandes empreendimentos em áreas litorâneas frequentemente resultam em exclusão, transformando o acesso às praias em um privilégio de poucos. Cabe destacar que a proposta da PEC da Praias caminhou ao mesmo tempo que o PL 2234/2022 que autoriza o funcionamento de bingos e de cassinos e regulariza jogos de azar, como o Jogo do Bicho, e apostas no País e, portanto, abre um caminho legal para grandes empreendimentos na zona costeira.
5. O que pode ser feito?
O Senado tem uma responsabilidade com toda a sociedade brasileira e a proposta atual da PEC das Praias está distante de refletir os direitos e benefícios para toda a sociedade. Algumas propostas e discussões essenciais não foram contempladas até o momento e para o qual o Senado precisa dar atenção:
- Manter a governança nacional sobre terrenos de marinha, assegurando uma abordagem coordenada para a adaptação climática.
- Proteger e restaurar áreas naturais em terrenos de marinha, reconhecendo seu papel essencial na resiliência climática. Portanto, ao invés de privatizar para grandes empreendimentos, o texto deveria tornar estas áreas como áreas de preservação permanente.
- Debater soluções específicas para ocupações anteriores às legislações ambientais, sem comprometer áreas naturais ou descentralizar a gestão desses territórios.
- Demonstrar o potencial econômico das áreas naturais. É fundamental realizar uma avaliação econômica que compare os custos de mitigação dos impactos da erosão costeira com os benefícios proporcionados pelas áreas naturais. Isso demonstraria de forma clara o quanto o poder público economiza ao preservar ecossistemas costeiros.
Esta discussão é urgente e deve ser realizada com dados científicos, de forma que promova um debate transparente que possa embasar a decisão da CCJ no Senado. Não à PEC 03/2022!
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* Presidente do Grupo de Especialistas em Cultura Oceânica da Unesco, secretário-executivo da Aliança Brasileira pela Cultura Oceânica e coordenador do Programa Maré de Ciência (Unifesp).
Texto publicado originalmente em https://maredeciencia.eco.br/
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