Luiz Alberto dos Santos *
Recentemente, passou a frequentar o noticiário político um tema até então ignorado pela maioria da população: a assim chamada “PEC da Vingança”, que é a Proposta de Emenda à Constituição nº 5, de 2021, que se encontra em vias de ser apreciada pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
A PEC 5/21 foi apresentada pelo deputado Paulo Teixeira (PT-SP), em 25 de março de 2021.
Essencialmente, o seu texto, na forma elaborada pelo autor, contemplava alteração ao artigo 130-A da Constituição, que dispõe sobre a composição e funcionamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), criado pela EC 45/2004, no bojo da “reforma do Judiciário”. A alteração se resumia em ampliar de 14 para 15 membros a composição do CNPM, reduzindo de 4 para 3 membros os escolhidos entre membros das Carreiras dos ramos do Ministério Público da União (MPU), incluindo, entre os 3 membros dos ministérios públicos dos Estados, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (hoje contemplado entre os 4 membros do MPU), e incluindo um novo membro, oriundo de qualquer dos ramos do Ministério Público, indicado alternadamente para cada mandato pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Explicitava, ainda, a possibilidade de que os membros indicados pelo STF e STJ poderiam ser um de seus ministros, e não apenas “juízes”.
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Os membros do conselho oriundos do Ministério Público passariam a ser indicados não mais pelos respectivos Ministérios Públicos, mas “pelo conjunto dos respectivos Ministérios Públicos, na forma da lei”, e o Corregedor Nacional, hoje escolhido em votação secreta dentre os membros do Ministério Público que o integram, passariam a ser elegíveis entre todos os membros, ou seja, qualquer dos membros poderia ser para tanto eleito pela maioria do conselho, vedada a recondução.
Não havia, assim, maiores preocupações, pelo autor, quanto às competências do CNMP, ou a atuação dos membros do ministério público, mas apenas com a composição do órgão e a eleição de seu Corregedor, e a indicação dos membros de carreira pelo próprio Ministério Público.
PublicidadeA PEC foi admitida, pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara, em prazo relativamente curto: já no dia 19 de abril de 2021, o relator, deputado Sílvio Costa Filho(Republicanos-PE), apresentou seu parecer, aprovado em 4 de maio de 2021. Ao apreciar o tema, o Relator na CCJC apresentou questionamentos de mérito e de caráter redacional, mas não promoveu nenhuma alteração de conteúdo, para afastar o sanear “inconstitucionalidades” porventura presentes.
A comissão especial constituída para examinar o mérito da PEC, tendo como relator designado o deputado Paulo Magalhães, reuniu-se a partir de 9 de junho, e realizou uma audiência pública, com a presença de representantes de membros e servidores dos diversos ramos do Ministério Público.
Contudo, vencido o prazo regimental de 40 sessões, a comissão não concluiu seus trabalhos com a aprovação de parecer do relator; tampouco foram apresentadas, no prazo de 10 sessões, emendas à PEC, com o apoiamento mínimo exigido de 1/3 dos membros da Câmara.
Assim, em 30 de setembro de 2021, o presidente da Câmara – num gesto revelador da importância dada ao tema – decidiu, com base no art. 52, § 6º, do Regimento Interno da Casa, enviar a PEC à apreciação de mérito, diretamente, pelo Plenário.
Esse gesto, inusitado, e poucas vezes praticado em relação às dezenas de PECs em tramitação na Casa, pode ser visto como prenúncio do que o Relator pretendia promover por meio de seu parecer, que não chegou a ser apresentado à Comissão antes do término de seu prazo de funcionamento.
Já no dia 6 de outubro – portanto, uma semana após a “avocação” da matéria -, a PEC foi incluída na ordem do dia, e o relator apresentou o seu parecer. Contudo, no mesmo dia, foram apresentadas em Plenário, sucessivamente, quatro versões desse parecer. Em 7 de outubro, nova versão foi apresentada. Assim, em um período de 24 horas, cinco versões distintas foram apresentadas.
O Parecer Preliminar de Plenário nº 5, que é o que, nesse momento, se acha em vias de apreciação, mantém a essência da proposta do autor, alterando a composição do CNPM. Amplia de 14 para 15 membros a sua composição, e reduz de quatro para 3 membros os representantes dos ramos do MPU, mas exclui da representação dos ministérios públicos estaduais o MPDFT. Mas inclui um membro dos Ministérios Públicos dos Estados ou da União, dentre os que ocupam ou ocuparam, respectivamente, o cargo de Procurador-Geral de Justiça ou Procurador-Geral de um dos ramos do Ministério Público da União, indicado a cada biênio, alternadamente, pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. E acresce como membro um ministro ou juiz, indicado pelo Supremo Tribunal Federal, eleito, alternadamente, pelo Senado Federal e pela Câmara dos Deputados.
Assim, os membros do Ministério Público, em sua totalidade, teriam 8 vagas na composição do CNMP, o mesmo número atual. Para integrarem o CNMP, deverão os membros oriundos do Ministério Público ter mais de 35 anos de idade e possuir mais de 10 anos na respectiva carreira, e a origem desses membros deixa de ter o caráter corporativo atual.
Suprime-se a garantia de representação “de cada uma das carreiras” do MPU, nas vagas a ele destinadas, em favor da garantia de que cada uma das 3 vagas previstas sejam, destinadas, respectivamente, ao Ministério Público Federal, do Ministério Público do Trabalho e ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, além de uma vagas a ser destinada não a membro de carreira do MPU, mas a membro de qualquer dos ministérios públicos que tenha ocupado cargo de Procurador-Geral de Justiça ou Procurador-Geral de um dos ramos do Ministério Público da União, mas cuja indicação terá o viés político da escolha das Casas do Congresso. Esse membro, ademais, exercerá a função de vice-presidente e corregedor do CNMP. Por outro lado, amplia-se a participação de magistrados no CNMP, indicado pelo STF.
Mas o que mais importa, para justificar a celeuma e o rótulo aposto à PEC nº 5/21, é a inclusão dos §§ 3º-F e 3º-G no art. 130 da CF, e a alteração contida no art. 2º da PEC, que dá nova redação ao art. 128, § 5º.
Tais alterações, ausentes na PEC original, preveem que o CNMP poderá, por meio de procedimentos não disciplinares, rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros, após a devida apuração em procedimento disciplinar, ou, em procedimento próprio de controle, quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais. Caberá, ainda, exclusivamente, ao Supremo Tribunal Federal o controle dos atos dos membros do Conselho Nacional do Ministério Público, os quais possuem as mesmas prerrogativas e garantias constitucionais dos membros do Conselho Nacional de Justiça.
Na forma da nova alínea “e” do inciso II do § 5º do art. 128, fica vedado aos membros do Ministério Público “exercer atividade político-partidária ou interferir na ordem política e nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política.”
Tais alterações evidenciam o desconforto, nos meios político e jurídico, com a atuação de membros do Ministério Público na condução das investigações da “Operação Lava-Jato”, evidenciados em vazamentos de comunicações entre os membros da “Força Tarefa” do Ministério Público que trouxeram à público a nítida orientação desses membros de interferir nos processos políticos anteriores às eleições de 2018. A atuação de membros do MPF, na ocasião, permeada de excessos midiáticos e abusos de autoridade, em conluio com o ex-Ministro da Justiça e ex-Juiz Federal Sérgio Moro, e com a possível participação de membros do Poder Judiciário e da Polícia Federal, levou à condenação em segunda instância e prisão do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acarretando a sua inelegibilidade. Em função do reconhecimento pelo STF da suspeição do ex-Juiz, que se tornou ministro da Justiça do candidato imediatamente favorecido pela atuação da Força Tarefa e de suas decisões, os processos e condenações foram anulados.
É de se perguntar se, não houvesse tal pano de fundo, a Câmara dos Deputados teria, em sua pauta, um Parecer a ser apreciado com esse teor. Provavelmente, não. Desde a Carta de 1988, o Ministério Público, alçado à condição de fiscal da Lei e dotado de garantias e autonomia, se tornou um ator decisivo, e importante, em processos relevantíssimos de defesa da ordem constitucional, da moralidade e dos direitos indisponíveis. Seus membros exerceram papel fundamental para garantir direitos e evitar abusos do Poder Político.
Granjearam, com isso, adversários e opositores, e proposições legislativas visaram restringir essa autonomia, sem sucesso.
Em 2000, a Câmara rejeitou, quando da apreciação da PEC 96/1992 (Reforma do Judiciário), dispositivo que proibia aos membros do Ministério Público “revelar ou permitir indevidamente que cheguem ao conhecimento de terceiro ou aos meios de comunicação fatos ou informações de que tenham ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal”.
Em 2013, o Congresso rejeito a PEC 37, de 2011, que excluía a competência do Ministério Público para apuração das infrações penais, reservando-a às polícias federal e civis dos Estados e do Distrito Federal.
Agora, porém, em contexto distinto – e já influenciado pela nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869, de 2019), aprovada também em decorrência de atuação abusiva de membros do ministério público, magistrados e policiais – vem ao debate uma proposta que, se não observou o devido processo legislativo, por não ter observado os limites à atuação do Relator em PECs, e sem ter sido submetida ao debate tempestivo em instância prévia ao Plenário, não se traduz, por outro lado, em afronta direta às prerrogativas dos membros do Ministério Público.
Isso porque, além de ser preservada a presença majoritária de membros oriundos da instituição no CNMP, ainda que reduzida a força da corporação na indicação de seus representantes, o fato é que ao se vedar a um membro do MP, em qualquer de seus ramos, de “exercer atividade político-partidária ou interferir na ordem política e nas instituições constitucionais com finalidade exclusivamente política”, e ao se permitir ao CNMP – que sempre deliberará por maioria de votos de seus membros, e não por ato individual de seu presidente, ou de seu vice-presidente e corregedor (que será um dos membros oriundos do próprio MP) – “rever ou desconstituir atos que constituam violação de dever funcional dos membros”, e observado o devido processo legal, “quando se observar a utilização do cargo com o objetivo de se interferir na ordem pública, na ordem política, na organização interna e na independência das instituições e dos órgãos constitucionais”, o que se está defendendo é, precisamente, a isenção dos membros do MP.
Em outro sentido, seria um completo descalabro se ter um membro do MP, não eleito, vitalício, com a capacidade de sobrepor-se à sociedade, ao Congresso Nacional, ou ao próprio Judiciário, exercendo um papel “moderador”, – que alguns, contaminados pelo viés do autoritarismo, já pretendem que venha a ser exercido, contra o texto da Carta, pelos militares – interferindo, indevidamente, na ordem pública, ou na ordem política, e na independência as instituições, sob a garantia da incolumidade de seus atos.
Certamente, não foi o que pretendeu o Constituinte originário: gerar uma casta, ou estamento, acima do bem e do mal, investido de um superpoder, e de todo irresponsável e imune a qualquer crítica ou controle. A EC 45/04, ao prever a competência do CNMP para “zelar pela observância do art. 37” e “apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei”, deixou de ser clara o suficiente para permitir que atos processuais, ou investigatórios, pudessem ser também objeto de controle, quando contrários aos princípios da moralidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e praticados com desvio de finalidade.
Data venia do que entendem em sentido contrário, ainda que se possa questionar o procedimento legislativo adotado – e, nisso, entendemos que nenhuma PEC deveria ser apreciada em plenário sem o crivo prévio das comissões especiais para tal fim constituídas, e, menos ainda, em função de juízo discricionário do Presidente da Câmara dos Deputados – não vislumbramos a ocorrência, de forma inequívoca, de afronta ao Ministério Público ou à sua capacidade de atuar por meio de ações civis públicas, ações penais, inquéritos e ações diretas de inconstitucionalidade, ou declaratórias de constitucionalidade, ou de arguição de descumprimento de preceito fundamental, pelo fato de que o CNMP tenha sua composição revista, e ampliada, ainda que de forma singela, e que passe a poder exercer controle mais amplo quanto à finalidade dos atos de membros do MP, em todos os seus ramos.
Com efeito, a legitimidade do MP será reforçada, caso episódios como os que geraram o ambientepolítico para a apreciação e eventual aprovação do Substitutivo apresentado em plenário pelo Relator da PEC nº 5/21 jamais houvessem ocorrido. E, certamente, haveria muito mais aliados na defesa incondicional de sua atuação, e menos apoio a qualquer hipótese de “vingança”.
Como salientou Montesquieu, em 1748, ao desenvolver a tese da separação dos poderes e dos “freios e contrapesos”,“a liberdade política só se encontra nos governos moderados. Mas ela nem sempre existe nos Estados moderados; só existe quando não se abusa do poder; mas trata-se de uma experiência eterna que todo homem que possui poder é levado a dele abusar; ele vai até onde encontra limites. Quem, diria! Até a virtude precisa de limites. Para que não se possa abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder limite o poder.”
*Alberto dos Santos é advogado, doutor em ciências sociais, mestre em administração, consultor legislativo do Senado Federal e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas
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