A agenda energética do Brasil voltou ao centro das discussões com o PL 576/21, que busca estabelecer o marco regulatório das offshores. O projeto, originalmente concebido para impulsionar a exploração de eólicas em mar aberto, ganhou um caráter mais abrangente ao incluir medidas para setores tradicionais como o carvão mineral e o gás natural.
Agora, cabe ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidir o futuro do texto até esta sexta-feira (10), quando acaba o prazo para sanção. Mas já se especula que haverá vetos, ainda não anunciados.
O projeto tem como objetivo inicial estabelecer diretrizes para a exploração de eólicas em mar aberto, uma importante iniciativa para expandir a matriz energética renovável do país.
No entanto, o texto final aprovado pelo Congresso ganhou contornos mais amplos, com a inclusão de dispositivos voltados para setores tradicionais como o carvão mineral e o gás natural.
Essas inclusões, os conhecidos “jabutis”, são dispositivos legislativos que normalmente se distanciam do tema original de uma proposta. Neste caso, conquanto o tema seja o mesmo (energia), efetivamente transcendem a mera questão eólica.
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De lá e de cá
Os referidos jabutis, tema de debate, trouxeram à tona um dilema que vai além do meio ambiente: como conciliar uma transição energética sustentável com a preservação de empregos em regiões dependentes tradicionalmente dessa atividade?
De um lado, há o compromisso global com a sustentabilidade. Do outro, a realidade de locais que têm na mineração de carvão e na geração de energia térmica a base de suas economias.
O texto aprovado pelo Congresso Nacional e que aguarda sanção presidencial reflete essa tensão.
Entre os dispositivos, destaca-se a obrigação de contratar, até 2050, termelétricas a carvão mineral nos leilões de reserva de capacidade, com exigência de funcionamento de até 70% dos dias do ano. Pela legislação atual, essa obrigatoriedade acabaria em 2028.
O texto também prevê a contratação de usinas termelétricas a gás natural por períodos mais longos ao longo do ano, e não somente em situações de risco de insegurança energética.
Os custos decorrentes da contratação de reserva de capacidade devem ser rateados entre todos os usuários finais de energia elétrica, incluídos os consumidores.
Um contrapeso econômico
A manutenção de incentivos a combustíveis fósseis, criticada por ambientalistas, encontra, todavia, respaldo em argumentos econômicos e sociais. Com efeito, no Sul do Brasil a mineração de carvão desempenha um papel econômico vital.
Segundo a Associação Brasileira de Carbono Sustentável (ABCS), as atividades relacionadas à cadeia produtiva do carvão — que incluem mineração, transporte ferroviário, usinas térmicas e a indústria de cimento (que utiliza a cinza seca do carvão) — empregam diretamente e indiretamente 21 mil pessoas no sul catarinense. Além disso, essa cadeia produtiva representa cerca de 0,49% do PIB do estado de Santa Catarina.
O impacto se estende ao Rio Grande do Sul, onde as atividades de mineração, usinas térmicas e fábricas de cimento formam uma cadeia produtiva ainda mais abrangente.
Segundo Fernando Luiz Zancan, presidente da ABCS, não se pode desativar nenhuma atividade econômica e criar desemprego no RS após as tragédias provocadas pelas enchentes no início de 2024. Segundo ele, o setor gera 36 mil empregos e contribui com R$ 1,6 bilhão por ano em impostos.
A relevância econômica do carvão é ainda mais evidente em algumas cidades da região. Um levantamento realizado em 2021 por pesquisadores da FGV-Ibre revelou que mais da metade das receitas municipais de cidades de Santa Catarina está atrelada à produção de carvão, com acréscimos de arrecadação de 54,8% e 52,2%, respectivamente.
Sem planejamento adequado, a transição para uma matriz limpa pode gerar impactos econômicos profundos, com desemprego em massa e desestruturação de economias locais.
Os dispositivos neste contexto, emergem como uma tentativa de evitar um abismo econômico, oferecendo tempo para adaptação e reconversão das comunidades dependentes desses setores. Assim como o animal, os “jabutis” legislativos indicam que a transição precisa ser lenta e calculada, passo a passo, para garantir que nenhum elo dessa cadeia produtiva seja abandonado.
Lá fora
Exemplos internacionais ilustram os desafios de uma transição energética acelerada. Na Alemanha, a busca por fontes renováveis, como energia eólica e solar, foi acompanhada por altos investimentos, mas também por falhas estruturais.
A dependência de gás natural importado, especialmente da Rússia, levou o país a reativar 15 usinas a carvão em 2022 diante de cortes no fornecimento. Apesar de sua ambição, o modelo alemão mostrou que transições mal planejadas podem comprometer tanto a segurança energética quanto a economia local.
Nos Estados Unidos, a abordagem foi mais gradual. Enquanto o carvão perdeu espaço no mix energético, o gás natural assumiu um papel central, respondendo por 39% da energia gerada em 2022, segundo a U.S. Energy Information Administration (EIA).
Entre a inovação e a realidade
O Brasil, com sua matriz energética predominantemente renovável, tem potencial para liderar a transição global para fontes limpas. No entanto, esse potencial não exclui a necessidade de considerar as especificidades regionais. Municípios que dependem do carvão ou do gás natural enfrentam desafios únicos, e a inclusão dos textos no PL das offshores reflete a tentativa dos parlamentares de equilibrar esses interesses.
Ao prorrogar os incentivos a combustíveis fósseis, o texto parece criar uma ponte entre o presente e o futuro energético. Embora a medida seja alvo de críticas, ela também reconhece a importância de uma transição que seja economicamente justa e socialmente inclusiva.
A metáfora dos “jabutis”, aliás, parece carregar um simbolismo pertinente: a transição energética no Brasil precisa avançar, mas não precisa ser a jato.